Os inquietantes kentukis de Samanta Schweblin
Notas e impressões de leitura do romance Kentukis
Na contracapa do meu exemplar de Pássaros na boca – lançado no Brasil em 2012 pela Editora Benvirá, com tradução de Joca Reiners Terron – convergem o prognóstico certeiro de Mario Vargas Llosa sobre a autora, assegurando tratar-se de “[u]m dos talentos mais promissores da atual literatura de língua espanhola”, e a constatação inconteste do jornal El Mundo, identificando em Samanta Schweblin “[u]ma das vozes mais potentes da nova narrativa argentina”. Penso que essa pode ser uma síntese bastante razoável – embora um tanto tímida e incompleta – da sua posição e representatividade no cenário da literatura contemporânea. Em favor dessa perspectiva testemunham, por exemplo, o sucesso extraordinário e o reconhecimento uníssono alcançados pela sua obra publicada até o presente, tanto pelo grande público quanto pelos leitores especializados, estudiosos, acadêmicos e críticos profissionais, além dos inúmeros e prestigiosos prêmios internacionais conquistados pelos seus livros.
Em 2021, a Editora Fósforo publicou o romance Kentukis (com tradução de Livia Deorsola); em 2022 relançou Pássaros na boca, adicionando ao volume os contos da coletânea Sete casas vazias; e, em janeiro deste ano (2024), publicou a primeira novela da autora, Distância de resgate – ambos traduzidos por Joca Reiners Terron. Com isso, contribui enormemente para ampliar ainda mais as oportunidades de acesso e contato do leitor brasileiro com a prosa originalíssima – intensa, desconcertante, transcendente – de Samanta Schweblin. Trata-se, pois, como já se convencionou reconhecer no meio literário e como afirmou El Mundo, da “herdeira do realismo mágico de Júlio Cortázar e Adolfo Bioy Casares” – [sobre Bioy Casares, escrevi algumas notas: aqui; e a respeito dos cronópios e famas de Cortázar: aqui].
Seu segundo livro de contos – o primeiro foi El Núcleo del Disturbio, de 2002, ainda inédito no Brasil –, Pássaros na boca, ao vencer o Premio Casa de Las Américas de 2008, projetou imediatamente o nome da autora ao estrelato da literatura internacional. Em 18 narrativas breves carregadas de altíssima tensão em corrente contínua, Samanta Schweblin vai consolidando ali a sua estética, imprimindo a sua marca muito própria nos registros da ficção fantástica do século XXI, tornando-se um nome de consenso em todas as listas de autores mais relevantes da atualidade. Os meus prediletos são Irman, Na estepe, Pássaros na boca, A medida das coisas, O cavador, A fúria das pestes, Matar um cão e Debaixo da terra.
Na coletânea Sete casas vazias, igualmente, não é difícil perceber que a escritora concentra a sua energia narrativa no esforço para instalar entre o córtex imaginativo e o campo sensorial do leitor uma inquietação crescente, um desconforto febril, uma comichante desconfiança daquilo que se acreditava ser o real, o mundo verdadeiro. Uma sensação de incessante deslocamento, de impermanência, de contínuo desmoronamento das estruturas racionais. As casas – reais ou metafóricas – são elementos ficcionais explorados de maneira exaustiva pela autora, extraindo-lhes o sumo dramatúrgico que irriga e congrega o conjunto dos relatos. Os meus preferidos são os contos Nada disso tudo, Meus pais e meus filhos, A respiração cavernosa e Quarenta centímetros quadrados. A propósito desse livro, esclarece a autora:
“Las cosas pasan alrededor de las casas, no en las casas. En el pórtico, en el garaje, en el jardín. Y las casas quedan vacías por un momento porque para solucionar los problemas, sus habitantes necesitan salir de ese confort. No es un vacío triste o de soledad sino el silencio que uno escucha cuando algo está pasando en otro lado. Las casas están vacías y eso significa que los personajes intentan hacer algo".
[Samanta Schweblin, em entrevista ao jornal El Mundo, Madri, 08/06/2015].
Em Distância de resgate (escrito em 2014, e publicado pela primeira vez no Brasil pela Ed. Record, em 2016, traduzido por Ivone C. Benedetti), a autora argentina explora em profundidade – e proporciona, assim, aos seus leitores – as experiências, reais ou imaginárias, mais desafiadoras, testando os limites da lucidez, processando incontornáveis confrontos com o medo e com a perplexidade. Toda desenvolvida em torno de um hipnótico diálogo, essa narrativa tensa, pulsante, vai arrastando o leitor – juntamente com a protagonista, Amanda – para um desfecho inevitável e impactante. Uma trama de suspense psicológico dotada de grande energia dramática. Uma peça de literatura-arte de raro efeito estético. Uma obra indispensável: reveladora. Uma história tão singular, um relato tão rico em elementos críticos para a descoberta e a reflexão – e mesmo pela denúncia que sua verdade exprime –, que já foi transposta ao cinema. Sob o título “Fever Dream” (no Brasil, O fio invisível), uma produção da Netflix de 2021, o filme teve o roteiro coescrito pela própria Samanta Schweblin com a premiada diretora peruana Claudia Llosa.
Kentukis, romance finalista do International Booker Prize de 2020 (com o título em inglês Little Eyes), é outro investimento de grande inventividade e ousadia criativa de Samanta Schweblin, transitando com elegância e desenvoltura entre as diversas vias da literatura fantástica, como a ficção insólita, o realismo mágico, a ficção especulativa.
A narrativa toma como premissa a existência e disponibilidade global massificada de um certo boneco-robô de pelúcia, pequeno, fofucho, mas com câmeras acopladas aos seus olhos e conectadas ao tablet da pessoa que possui o código de acesso correspondente a cada unidade. A esses bonecos – em forma de pandas, dragões, coelhos, toupeiras, corvos ou corujas – deu-se o nome de kentukis. Nesse universo, as pessoas tanto podem “ter” um kentuki, tornando-se seu “amo”, comprando um desses bonecos nos pontos de venda disponíveis praticamente a cada esquina das principais metrópoles do mundo; quanto podem “ser” um kentuki, adquirindo um cartão com um código de ativação, também de fácil acesso nos mesmos pontos. Com isso, assim que o boneco correspondente ao código do cartão é ligado, estando cada qual em qualquer ponto do planeta, torna-se possível a quem “é” aquele kentuki acessar por vídeo, em tempo real, o cotidiano da sua ama ou do seu amo. O romance acompanha e transcreve a jornada de alguns personagens, amos e kentukis, espalhados por países como Alemanha, México, Noruega, Guatemala, Itália, Peru, Hong Kong, Croácia e até mesmo no Brasil, retratando suas experiências de interação e relacionamento, mediadas pelos respectivos bonecos.
Talvez por já terem sido associados, metaforicamente, à imagem de um “Tomagochi do Black Mirror” (na excelente resenha de Aline Aimee), por exemplo, ou talvez por nos remeterem a imponderáveis exercícios abstrativos de hibridização de personagens como o ursinho protagonista de “Ted” (de Seth MacFarlane) com o robô romântico e sentimental WALL-E (de Andrew Stanton); ou com Chucky,o temido boneco-do-mal protagonista de “Brinquedo assassino” (Child’s play, de Tom Holland), ou os simpáticos monstrinhos Gremlins (de Joe Dante) com quaisquer dos demais, enfim, o caso é que os kentukis nos parecem perturbadoramente familiares. Tais dispositivos, sabemos, assim como os modos de uso e interação, como sugeridos no romance de Schweblin, já são viáveis, certamente, nos dias presentes, dada a disponibilidade atual de tecnologia e logística industrial mais do que suficiente para a sua fabricação e distribuição. Embora (pelo menos, ao que eu saiba), continuam ainda inexistentes. A própria autora, inclusive, em resposta a uma entrevista concedida ao Estadão, assim se posiciona:
“[...] Não há nada no romance Kentukis que ainda não exista em nosso mundo, e eu queria deixar todos os detalhes técnicos de fora para ajudar nessa leitura realista, embora às vezes seja chamada de distópico, de ficção científica. Acho essa resposta dos leitores fascinante. É como se a realidade se movesse tão rápido que podemos absorvê-la em nossas rotinas, mas ainda não podemos pensar nela como nossa.”
[Samanta Schweblin, em entrevista para o Estadão, 03/08/2021].
Desdo cerne, da sumessência, do romance, assumem protagonismo e centralidade os temas da privacidade da vida individual em face do voyeurismo e do stalking digital; da ética e da estética nas relações interpessoais mediadas por interfaces conectadas; do impacto sobre o comportamento e o pensamento das pessoas em contextos de interação intensiva com dispositivos e inteligências não humanos. Tópicos e interrogações cada vez mais presentes e relevantes em nossos tempos.
As experiências e peripécias de personagens tão plausíveis, vívidos, são relatadas sem excessos, situadas diante da crise de espetacularização irrestrita da vida dita “normal”, numa competição insana e imatura pela exposição voluntária das mazelas da intimidade privada. Parece que, quanto mais ridículo, raso, humilhante, primário é o conteúdo, mais atrativo, engajante, viciante e, claro, interessante para as plataformas de compartilhamento por dispersão viral, ajudando assim a entregar ao público imbecilizado pelos delírios do algoritmo a sua dose diária de validação social. Um veículo para evasão (ainda que ilusória, transitória) de uma vida às vezes medíocre, sem cor, sem horizonte, sem substância, para o estrelato (não menos ilusório), ainda que circunstancial, nas efêmeras janelas das redes sociais e de trocas de mensagens.
Será que, como contrapartida pelos confortos, comodidades e outros pequenos prazeres hedonistas trazidos e propiciados pela era tecnológica, esses mesmos benefícios – ao premiarem e cultivarem a preguiça, a inércia, a ignorância, a lassidão, ou seja, a dependência –, passam, na mesma medida, a serem tão ou mais prejudiciais à sociedade humana? Dessa discussão, ou seja, da reflexão suscitada pela presença dos kentukis na vida das pessoas, participam todos os episódios narrados, em forma de capítulos, intercalando o desenvolvimento das respectivas tramas – algumas das quais contidas em um capítulo único.
Como já se sabe por toda parte, Samanta Schweblin é capaz, como ninguém, de construir uma atmosfera perturbadora, intrigante, sinistra ou bizarra, utilizando com precisão microscópica uma combinação bem estruturada de cenários angustiantes, personagens singulares e circunstâncias insólitas. Com o seu texto limpo e preciso, conduz o olhar e a sensibilidade do leitor pela arquitetura inquieta das realidades inconclusas, fraturadas, que desenvolve e manipula com técnica e talento incomuns. Falando pelas filigranas, saltitando distraída pelas entrelinhas dos subtextos que semeia, enquanto a narrativa nos conduz pelos entremeios dos enredos sufocantes, ela nos mostra cenas tão cativantes, e nos aluga as expectativas de tal modo, que é só no final do capítulo é que voltamos a respirar.
A maneira singular como Samanta Schweblin maneja a palavra, desenvolvendo e mantendo as suas narrativas numa contínua sensação de expectativa, carregada de presságios e premonições, num angustioso estado de suspensão – a partir de onde o insólito se instala, sem escândalo, mais insinuando do que acontecendo –, produz a experiência, pelo menos para mim, daquela “linguagem à segunda potência” a que se referia Merleau-Ponty em A prosa do mundo, Ed. Cosac & Naify, 2002, pg. 16). Quer dizer, tal como nas obras realmente poderosas, que a durabilidade no tempo e na admiração das sucessivas gerações vai transformando em clássicos, ocorre que, nesse imenso romance (ainda que breve, com menos de 200 páginas), de cada história relatada, de cada ato, cena, fala, de cada silêncio, de cada suspiro sintático, extraem-se achados e descobertas, derramam-se revelações, eclodem surpresas. Nesse ritmo, enfim, fazem-se enredar os nervos e tendões cismáticos do leitor. Então, daí pra frente, tudo é excitação, tudo é euforia e radiação solar, por todo o entorno. Tudo arde, ao redor. Tudo vive. Tudo fulge. Tudo é Arte.
DIGRESSÃO:
É bastante comum e mesmo frequente até que, ao se listarem os nomes mais representativos da literatura latino-americana na atualidade, que Samanta Schweblin apareça ao lado de Mariana Enriquez. De fato, ambas são estrelas de primeira grandeza - ao lado de inúmeras autoras e autores das mais variadas nacionalidades - na constelação desse novo boom da literatura fantástica no nosso Continente.
[A propósito de Enriquez, e particularmente sobre seu livro As coisas que perdemos no fogo, escrevi algumas notas: aqui].
Cláudio Dutra,
Floripa, 11/02/2024
Parece ótimo! Está na minha lista de leitura!