Bioy Casares e a invenção da imortalidade
Notas e digressões a partir da leitura de A invenção de Morel
A invenção de Morel, primeiro e mais famoso romance de Adolfo Bioy Casares, publicado em 1940, é uma obra poderosa, envolvente, sedutora, que nos captura a atenção desde o primeiro contato, tanto pela inteligência da urdidura do enredo quanto pela tensa fluidez com que a narrativa escorre diante de nossos olhos. Como o grande mestre Jorge Luis Borges – a quem a obra é dedicada – fez questão de mencionar já no seu prólogo, trata-se de um caso incomum de criação literária desenvolvida com base na “imaginação racional”, e tão inovadora a ponto de poder declarar que esse livro, “(cujo título alude filialmente a outro inventor ilhéu, Moreau) traslada um gênero novo para nossas terras e nosso idioma”, constituindo, a seu ver, uma trama nada menos do que “perfeita”.
Eu me lembro de ter lido essa narrativa uma primeira vez lá pela metade da última década do século passado – ou talvez antes, não tenho certeza. Até à sua releitura em dias recentes, eu já não me recordava mais de praticamente nenhum dos detalhes relevantes do enredo, ou sequer dos nomes dos personagens, nem tampouco de qualquer dos acontecimentos cruciais do relato de Bioy Casares. Mas podia ainda perceber e experimentar aquela sensação de deslumbramento, descoberta, enlevo, que algumas obras são capazes de tatuar na nossa sensibilidade, e por isso permanecem conosco para sempre.
Em todo o caso, esse é um daqueles títulos que figuram em aproximadamente cento e dez por cento das listas e prateleiras de clássicos da literatura latino-americana. Nas bibliotecas ou livrarias em que se apreciam categorizações mais rigorosas e específicas, pode ser encontrado entre as grandes narrativas da ficção fantástica – ora enturmado com o grupo do realismo mágico, ora mais próximo aos aficionados da ficção científica. O consenso, todavia, é que se trata de um astro de primeira grandeza na constelação dos maiores nomes da literatura ocidental.
A biografia de Bioy Casares sempre esteve relacionada a grandes momentos da cena cultural argentina e da América Latina, tendo protagonizado – ao lado de Borges, seu amigo e parceiro de vivência literária, de Silvina Ocampo, sua esposa, grande escritora e importante representante do realismo mágico, além de outros notáveis autores desse período – um papel preponderante na projeção mundial da prosa fantástica produzida no continente, principalmente a partir da segunda metade do século XX.
Como não se estabeleceu um acordo definitivo acerca do alinhamento estético dessa narrativa em relação aos gêneros literários vigentes em sua época (na minha opinião por ser simplesmente inviável, tal acordo), algumas polêmicas ainda persistem a esse respeito. A começar pela (aparentemente intencional) indecisão da leitura borgeana, expressa no seu prólogo, cuidando mais de compará-lo, aproximá-lo ou distanciá-lo dos romances de aventuras, psicológicos ou policiais – talvez buscando demonstrar que a obra de Bioy Casares, ainda que não se filie a nenhum deles, é portadora do que de melhor há em cada um – do que de esclarecer como pretendia situá-lo como fundador de um “gênero novo”, ou em que consistiria esse gênero.
Entretanto, não há como não identificar A invenção de Morel – por todas as suas características construtivas, arquitetura do enredo, elementos ficcionais, desenho de personagens, cenários, contexto e efeitos plásticos alcançados – com o realismo mágico (ou realismo fantástico). A testemunhar em favor dessa tese, impõe-se a proximidade orgânica, por assim dizer, tanto da obra quanto do seu autor, com os estágios de fecundação, germinação e nascimento desse estilo literário no seio da prosa ocidental. Pois foi no seu entorno (e mais ainda no de Borges, um dos epicentros desse vórtice, juntamente com García Márquez e Julio Cortázar) que o subgênero se consolidou e ganhou o mundo, por volta das décadas de 1960 e 70. A ninguém surpreende, portanto, que tanto o nome de Bioy Casares quanto o título de seu romance mais conhecido sejam geralmente impressos em associação direta tanto ao primeiro boom da literatura fantástica latino-americana quanto à emergência da sua face pública mais reconhecida, o realismo mágico.
Por outro viés, Borges também admite uma correlação direta entre A invenção de Morel e a ficção científica, associando-a ao clássico A ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells, publicado em 1896. E não apenas pelo parentesco fonético dos nomes de seus personagens centrais (Morel/Moreau), ou pela familiaridade contextual das tramas (já que ambas são ambientadas em uma ilha desconhecida e isolada do restante do mundo), mas sobretudo, penso, pela presença, no livro do autor argentino, de alguns elementos que tipificam a sua narrativa como ficção científica. Por exemplo: transições temporais (o protagonista “convive” com personagens que ali estiveram em outros tempos); universos paralelos; máquinas, aparelhos e instrumentos inventados para produzir resultados “incomuns”; ambição de transcendência por meio do empreendimento tecnológico.
Numa espécie de contrapartida de reconhecimento recíproco entre as duas obras, já no prefácio da edição brasileira de 2012 (Ed. Alfaguara) de A ilha do Dr. Moreau, o escritor e crítico Braulio Tavares situa o romance de Bioy Casares no contexto de “uma longa tradição literária de histórias sobre ilhas remotas, governadas por um indivíduo todo-poderoso que realiza ali experiências fantásticas”.
Ainda assim, essa identificação com a ficção científica não é uma questão totalmente pacificada, entre os estudiosos da sua obra. Em um artigo publicado no Jornal El País (em 15/09/2014), por exemplo, Alejandro Rebossio lembra que a renomada pesquisadora Soledad Quereilhac reconhece que “Bioy era fascinado pela ciência de antigamente. Há críticos que ainda o incluem na ficção científica. Isso é polêmico, porque se formos falar de ficção científica em Bioy, deveríamos fazer uma correção sutil e dizer ficção científica retrô”, evidenciando a sua preferência pelos “elementos residuais de uma ciência que é própria do período entresséculos”.
Desse modo, mesmo que sob ressalvas, me parece bastante razoável – e necessário, até – considerar A invenção de Morel também como um extraordinário exemplar da melhor ficção científica latino-americana. E não faltam, por isso, em reconhecimento da sua qualidade e fecundidade, transcrições, releituras e adaptações para outras linguagens e formatos – como a série de televisão Lost, a versão em HQ de JP. Mourney, o filme homônimo de Emidio Greco (1974), entre tantas outras.
Seguindo, uma vez mais, o exemplo de Borges e, como ele, temendo “incorrer em prematuras ou parciais revelações” – isto é, como se diz mais presentemente, tomando todo cuidado para não dar spoilers que possam privar o leitor do prazer da descoberta e fruição desse texto –, vou tentar sintetizar em poucos parágrafos o principais aspectos dessa trama tão bem construída.
O enredo se compõe a partir do relato, em primeira pessoa, das memórias e reflexões do protagonista-narrador, um perseguido político venezuelano em fuga que acaba aportando numa ilha misteriosa, que ele julga a princípio deserta e segura para se esconder. Segundo a narrativa, ele foge de uma sentença de prisão perpétua, cujas acusações, causas ou circunstâncias específicas ficamos sem conhecer com clareza, permanecendo sob uma névoa de tecitura kafkiana.
Essa ilha, segundo o mercador italiano que a sugeriu ao fugitivo, teria ainda disponíveis alguns edifícios (museu, capela, piscina), construídos e abandonados há décadas, mas alerta que o local seria também o foco de uma enfermidade letal, que dizimara de uma vez os habitantes de então. Sem desprezar o risco, mas talvez se sentindo em segurança por já haver transcorrido tanto tempo desde aquelas mortes, o fugitivo insiste em refugiar-se lá.
Ao chegar, tenta ir se adaptando ao ambiente, aproximando-se com cuidado daqueles edifícios e instalações, antes de ocupá-los. Começa por tratar de aprender os signos da natureza, os humores das marés pelas fases da Lua (elaborando, também ele, o seu Lunário ;). Até que, do nada, se depara com pessoas – que ele considera “intrusos” – circulando por ali. Ocupam as instalações, conversam, confraternizam, nadam na piscina, passeiam pela ilha.
“Sua inexplicável aparição poderia levar a supor que tudo é efeito do calor de ontem sobre meu cérebro; mas não se trata de alucinações nem de imagens; há homens reais, pelo menos tão reais como eu.” [A invenção de Morel]
Entre aquelas pessoas há uma mulher que logo atrai a sua atenção e interesse. Seguindo-a furtivamente, tentando manter-se incógnito de início, ele fica sabendo que ela se chama Faustine. Mas, à medida que vai se aproximando, descobre-se também apaixonado por ela. Quando afinal decide se apresentar e declarar o seu amor, constata que ela – e todos os demais hóspedes da ilha – simplesmente ignoram a sua existência.
Um dos grandes momentos de epifania do leitor se dá quando, aproximadamente ali pela metade do romance, o anfitrião daquele grupo – o próprio Morel, que empresta seu nome ao título do livro – resolve expor e explicar aos seus convidados a sua mais nova invenção. Daí por diante, o narrador terá que se defrontar – além das situações mais estranhas e inusitadas e acontecimentos insólitos – também com questões éticas e temas filosóficos, como a ideia da imortalidade do indivíduo, por exemplo.
O projeto de Morel, descrito no relato de Bioy Casares, segundo a minha interpretação (e sem entrar em mais detalhes), poderia ser pensado como uma espécie de máquina do eterno retorno (numa abordagem muito próxima à formulação de Friedrich Nietzsche, particularmente no Zaratustra), que pretendia capturar a eternidade e colocá-la ao alcance daquele grupo de convidados.
“Tudo de novo, tudo eternamente, tudo encadeado, emaranhado, enamorado, oh, assim amais vós o mundo, – vós, eternos, o amais eternamente e a todo tempo: e também a dor dizeis: passa, mas retorna. Pois todo prazer quer – eternidade!” [Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Parte IV]
No entanto, nem tudo sai como Morel planejava – ou como o narrador esperava – e o desfecho guarda surpresas, descobertas e emoções que somente a Grande Arte é capaz de nos presentear.
Por tudo isso, e por tanto mais, A invenção de Morel é, sem dúvida, um daqueles textos que nos tomam pela mão e nos conduzem – ora encantados, ora aturdidos – por caminhos às vezes labirínticos (cheios de magia e novidade), às vezes retilíneos (científicos, racionais), mas sempre repletos de constatações desconcertantes. Como diz Daniel Falkemback em seu belo artigo publicado na edição nº 213 do Jornal Rascunho, “o romance se complica sem parar até o fim, de modo que o leitor, instigado pela ciência por trás da ilha e da ‘invenção' de outra personagem, Morel, acaba somente na dúvida entre a fé ou não naquilo em que leu. É uma narrativa que brinca com nosso conhecimento, com nossa vontade em entender e com nosso fascínio por uma tecnologia humana milagrosa e redentora em um local de tantos mistérios naturais”. Trata-se, pois, de uma experiência que continua reverberando nas fibras da nossa memória por longo tempo, ainda que nos distanciemos da trama ou dos pormenores do enredo, mas preservando o eco das sensações que produziu e mobilizou durante a leitura.
Uma experiência indispensável para quem aprecia a Literatura assumida e praticada como Arte, como aquelas leituras que nos ficam impregnadas na retina meio que para sempre. Refiro-me a obras – só para citar algumas – como: Cem anos de solidão (Gabriel García Márquez), Grande sertão, veredas (João Guimarães Rosa), Crime e castigo (Fiódor Dostoiésvski), O Aleph e O informe de Brodie (Jorge Luis Borges), Bestiário e Histórias de cronópios e de famas (Julio Cortázar), 2666 (Roberto Bolaño), A jangada de pedra e Ensaio sobre a cegueira (José Saramago), O remorso de Baltazar Serapião (Valter Hugo Mãe), Pássaros na boca (Samanta Schweblin), As cidades invisíveis (Ítalo Calvino), Kafka à beira-mar e 1q84 (Haruki Murakami), Terra sonâmbula (Mia Couto), Catatau (Paulo Leminski), O processo e Um artista da fome (Franz Kafka)... Enfim, enfim.
Então, para concluir, considerando que na trama do romance a pretensão de Morel – com a sua inusitada invenção – era alcançar nada menos do que a imortalidade, o que podemos constatar como resultado é que, independente do êxito do personagem, o gênio criativo do seu inventor, Adolfo Bioy Casares, por certo permitiu-lhe posicionar o seu próprio nome entre os grandes do seu tempo, tornando-se para sempre imortal.
Digressões:
Para saber mais sobre as conexões e afinidades entre A invenção de Morel e a série Lost, recomendo uma consulta à Lostpédia.
Sobre o conceito de Eterno Retorno, formulado por Nietzsche, recomendo o belíssimo trabalho – sob todos os aspectos – veiculado pelo site Razão Inadequada.
Uma bio de Bioy: para quem quiser conhecer um pouco mais detalhadamente a biografia do autor, recomendo a “Bioygrafía. Vida y obra de Adolfo Bioy Casares”.
E não poderia faltar, como indicação de leitura, a consagrada Revista Morel, editada pelo escritor, tradutor, jornalista e multiartista Ronaldo Bressane.
Floripa, 20/07/2023