A força da nova literatura fantástica nos contos de Mariana Enriquez
Notas sobre “As coisas que perdemos no fogo”
Eu havia me planejado inicialmente para tentar transcrever em alguns poucos parágrafos as minhas impressões mais imediatas da leitura recente que fiz dos contos que compõem o volume As coisas que perdemos no fogo (Ed. Intrínseca, 2017), de Mariana Enriquez. No entanto, enquanto editava as minhas notas, fui me deparando com interessantes pontos de conexão da sua literatura com a de outra grande voz da literatura fantástica hispano-americana contemporânea, Samanta Schweblin.
De pronto, me pareceu incontornável a associação desses nomes, que figuram em todas as listas de autoras relevantes da “nova narrativa argentina”, ambas pop stars brilhando no epicentro do chamado novo boom da literatura latino-americana. Não há como não traçar paralelos (os temas contemporâneos da violência de gênero cotidianizada, das dimensões do feminino, do embate político, da crise social); impossível não encontrar contrapontos (o terror sem rosto da ameaça sempre iminente, de Schweblin, em contraste com o horror explícito nas feições dos monstros, fantasmas e facínoras de Enriquez, por exemplo). Todavia, logo percebi que a extensão e a complexidade dessa empreitada – uma leitura comparativa das duas autoras e seus estilos respectivos – requer e merece um espaço específico e apropriado, o que poderá ocorrer em momento futuro. Por ora, o melhor a fazer é direcionar o foco do farol para os textos de Mariana Enriquez.
Muito embora ela própria prefira situar-se como escritora do gênero horror – mesmo transitando com desenvoltura pelo terror e pelo gótico –, a sua prosa transcende as fronteiras dessas categorias e se expande para uma literatura transversal, universal. Os personagens de Mariana Enriquez são complexos e profundos, revelando nuances e aspectos singulares da condição humana, enquanto os seus mundos ficcionais são também contextos para um questionamento político claro e posicionado.
Tomando a sua cidade natal, Buenos Aires, como cenário predominante, mas sob uma ambientação poeana (em tons sombrios e claustrofóbicos, lugares lúgubres, casas assombradas, trânsito intenso nas alfândegas do entremundos), os seus relatos refletem as principais tensões e pulsões presentes na sociedade argentina contemporânea. O seu discurso tem um destino e um propósito para além da expressão literária.
Com frequência se diz que a prosa de Enriquez é visceral, hipnótica, corrosiva. Isso, por certo, se dá porque os seus contos são mastigados em cenas cruas, plasticamente potentes e pesadas, tipo fratura exposta, dando corpo e forma (às vezes grotescos, macabros, doentios) aos medos do sobrenatural, do obscuro, que todos carregamos nalgum dos esconderijos mais íntimos e secretos da nossa identidade.
Por isso, talvez, cada um dos doze contos que integram a coletânea produz o seu próprio efeito e impacto – seja pelo universo ficcional perturbador; seja pela dimensão das extrapolações impressas no tecido espaço-temporal da trama; seja pela compulsiva combinação de transgressão/exagero/abuso/anomalia que parece intrínseca aos seus personagens; seja por outra causa qualquer –, mas todos contribuem, em sua exata proporção, para o efeito e o impacto que o conjunto proporciona. Uma tensão permanente, um desconforto intencional, um estranho estado de alerta, uma comichão neuronal, uma gastura abstrata por saber mais da história, o seu final.
O conto “O menino sujo”, que abre o volume, por exemplo, traz a experiência intensa de uma personagem que vive num bairro – Constitución – particularmente pobre e violento da capital argentina, em suas interações com a miséria e a degradação humana. Um pêndulo sempre indeciso entre o afeto e a indiferença, entre a empatia e a impotência. Difícil impasse entre ser-no-mundo e deixar-se ir no fluxo dos dias, pois o que passa nem sempre é o que fica: nada permanece.
Já na inquietante narrativa “Pablito clavó un clavito: uma evocação do Baixinho Orelhudo” – outro momento alto do livro – o que sobressai é a sutileza quase poética da premissa. Como recurso expositivo, Enriquez lança mão do insólito confronto de um guia turístico dedicado a percorrer diariamente, pela cidade, o roteiro dos crimes de um lendário assassino em série (o Baixinho Orelhudo) com o seu fantasma redivivo e sempre ameaçador, temerário. Um percurso ao final do qual todos chegamos já praticamente sem oxigênio, os olhos vidrados, o coração aos saltos.
Outro testemunho categórico da potência criativa da sua literatura está no conto “As coisas que perdemos no fogo”. Além de emprestar o seu título ao livro, é um relato no qual Mariana Enriquez lança mão do seu refinado domínio da técnica de produção de reações e sintomas próprios da literatura de horror – o asco, o nojo, a repugnância, o temor – por meio da descrição vívida e objetiva dos efeitos do fogo nos corpos das mulheres incendiadas, da pele derretida, da carne mutilada. Mas é, também – e talvez mais apropriadamente, até – um libelo contra a violência de gênero, um grito agudo, de alerta e denúncia, contra os tímpanos da intolerância.
Um dos destaques mais relevantes do livro, a meu ver, está na habilidade da autora em articular elementos insólitos e sobrenaturais com a realidade cotidiana, estimulando um sentimento de proximidade do leitor com os eventos narrados.
Beneficiando-se de sua cultura jornalística e pondo-a a serviço de uma imaginação privilegiada, Mariana Enriquez mobiliza os seus melhores recursos e instrumentos de manejo da linguagem narrativa para produzir uma obra poderosa, impactante, provocativa.
As coisas que perdemos no fogo é uma leitura necessária, portanto, e indispensável para quem aprecia histórias fantásticas tensas e intensas, capazes de estimular tanto os sentidos quanto as papilas imaginativas do leitor.
Coincidências:
Há alguns dias li a notícia de que o conto “As coisas que perdemos no fogo” será adaptado para o cinema. Logo me pus a cogitar qual será - quando o filme for realizado - o seu título em inglês, pois “Things we lost in the fire” já existe.
Achei interessante a familiaridade conceitual das capas dos livros de Mariana Enriquez (Ed. Intrínseca, 2017) e Samanta Schweblin (Ed. Fósforo, 2022):
Floripa, 19/05/2023
Nossa! Adorei! Não conheço a autora, mas fiquei curiosa!
Um aulão, Claudio. Ainda não conheço a Mariana Enriquez, mas o post me trouxe a vontade de parar tudo e ir ler agora. Da Schweblin já li alguma coisa, mas pouco. Assinei a news e vou seguir.