Um clássico do realismo mágico: Cortázar sempre vivo e desconcertante
Histórias de cronópios, de famas e de um acontecimento literário
Um dos livros mais marcantes e decisivos na minha formação literária, Histórias de cronópios e de famas, de Julio Cortázar, aparece com frequência associado a um momento de radicalização e transição na trajetória da literatura fantástica latino-americana, um salto para outra dimensão, para um novo estágio evolutivo do realismo mágico. E não é sem razão. Antes de tudo, porque é uma obra lavrada no curso de uma prosa poética que verte espontânea, lépida como uma bailarina, mas igualmente crítica, cirúrgica, precisa como uma agulha – o que a torna desde logo uma das mais sedutoras experiências de criação literária como expressão essencialmente artística.
O impacto da sua potência inventiva se anuncia já a partir do título do livro e se infiltra pelas palavras, atravessa as páginas e contamina as mãos, os olhos, o raciocínio e a percepção do leitor. De pronto, a atitude poética se estabelece, impõe-se de forma categórica, preparando o cenário para as peripécias e contratempos dos insólitos protagonistas. Sobre estes, basta dizer que entre os cronópios (“personagens indefiníveis [...], muito cômicos, divertidos, amigos” que Cortázar descobriu em Paris, no Théâtre des Champs-Élysées numa noite de 1952, no entreato de um concerto regido por Ígor Stravinsky e recitado por Jean Cocteau) e os famas, seus opostos (“metódicos, planejadores, cheios de regras para tudo”, como descreve Braulio Tavares), transitam as esperanças, que são personagens volúveis que se amoldam à dança das circunstâncias.
Trata-se, enfim, de um belo exemplar daquelas obras categorizadas por Olyveira Daemon como “excêntricas, estranhas, insólitas, bizarras, expressionistas, quero dizer, verdadeiramente autorais”, talvez um dos últimos postos de resistência da livre criação literária – e artística, em geral – tanto à pasteurização dos formatos e suas fórmulas quanto à “inundação algorítmica” desencadeada pela inteligência artificial em sua “campanha de conquista da subjetividade humana”. Talvez um último refúgio onde a imaginação puramente biológica pode ainda experimentar a sua expressividade mais autêntica.
De toda sorte, como um bom clássico, continua se impondo como uma releitura necessária, de tempos em tempos – mas que resulta sempre renovada, inovadora, surpreendente, sempre desconcertante.
Floripa, 28/04/2023