Mohamed Mbougar Sarr: ecos no labirinto dos espelhos
Notas e impressões da leitura de "A mais recôndita memória dos homens"
“No escritor o pensamento não dirige de fora a linguagem: o escritor é ele mesmo um novo idioma que se constrói, que inventa meios de expressão e se diversifica segundo seu próprio sentido. O que chamamos de poesia talvez seja apenas a parte da literatura onde essa autonomia se afirma com ostentação. Toda grande prosa é também uma recriação do instrumento significante, doravante manejado segundo uma sintaxe nova. O prosaico limita-se a abordar por signos convencionais as significações já instaladas na cultura. A grande prosa é a arte de captar um sentido jamais objetivado até então e de torná-lo acessível a todos os que falam a mesma língua.”
[Maurice Merleau-Ponty, A prosa do mundo, p. 9, Ed. Cosac & Naify, 2002]
Um grande texto literário, para o meu gosto, tem que fazer a gente levitar pelo menos um pouquinho acima do chão – como um solo de David Gilmour, uma tela de Dalí, uma sequência de Fellini. Precisa operar deslocamentos e descentramentos nos nossos eixos, endereçar-nos para outros espaços, abduzir-nos daqui. Para ficar onde se está, já se tem a realidade. E essa, ainda, cada vez mais sem graça, mais escassa de si mesma; cada dia mais caduca dos prognósticos.
Como uma cena de Bosch, um concerto de Mozart, uma gravura de Escher, um grande romance deve cuidar, desde logo, de desestabilizar a nossa concentração, sequestrar o nosso interesse, sugar-nos para si. Deve apresentar possibilidades, dimensões, situações, instâncias e circunstâncias que jamais imaginaríamos que pudessem existir. E, simultaneamente, deve saber mobilizar energias vitais por dentro dos nossos impulsos, fazendo-nos mover conforme a sua vontade e determinação. Mesmo que, para isso, necessite chacoalhar os pilares da normalidade, instaurar dizeres e calares novos, romper com tudo o que se conhece e começar algo outro.
Como um poema épico, um libreto de ópera, uma dramaturgia irônica ou ambição literária equivalente, uma grande narrativa precisa, antes de tudo, como se sabe, contar uma boa história. Que seja original, diversa, complexa, colorida e que envolva bastante ação, interação e interlocução é o que sempre se deseja. Que suscite reflexões e questionamentos profundos, igualmente. E que, de preferência de um modo inédito e peculiar, aborde algumas das inquietações universais acerca da experiência humana e suas repercussões no fluxo da vida. Inclusive, se possível, que tematize a própria condição da grande arte em geral – e da arte literária em particular – em seu fazer instituidor de existências, admitindo-a como um dos motores ontológicos da contínua expansão do Ser.
Pois, com A mais recôndita memória dos homens, romance de Mohamed Mbougar Sarr vencedor do Prêmio Goncourt 2021, publicado no Brasil pela Editora Fósforo (2022, trad. Diogo Cardoso), é aproximadamente isso o que acontece. Em suma, uma obra extraordinária, incomum, à qual logo me ocorre empregar uma afirmação atribuída a Peter Bichsel (que aparece na orelha do romance “O ajudante” de Robert Walser, Editora ARX, 2003, trad. Zé Pedro Antunes), acrescentando que, tal como naquele caso, também neste se trata de um livro composto por “milhares de frases, todas citáveis”. Ou seja, serotonina e algodão doce para todo lado, o tempo todo.
Lembro que quando me sentei para iniciar a leitura, do nada, de graça, comecei a imaginar borboletas. Centenas delas: simplesmente apareceram. Durante algum tempo fiquei apenas observando os seus caóticos aerovoos e suas acrobacias tresloucadas ao meu redor, pois nenhuma se dispunha a pousar. Cheguei mesmo a acreditar que elas haviam atravessado saharas e saharas só para estarem aqui, comigo, para me acompanharem no início da jornada que me aguarda. Vieram então e se posicionaram logo acima da minha cabeça. Senti quando seus olhinhos múltiplos e curiosos, equipados com milhares de lentes e sensores cada um, alinharam-se aos meus – e percebi que também cintilaram quando a página se abriu.
Logo no primeiro contato com o texto, uma centelha de ignição. Daí, um arrepio - e o enlevo. Até que, num arranque tão repentino e inesperado que fez as borboletas esvoaçarem alvoroçadas, consumou-se o arrebatamento. Daquela massa de sinais gráficos que ali se organizam, dispostos precisamente daquele modo, naquele arranjo único e intencional sobre o fundo claro da página aberta, signo após signo, vocábulo após vocábulo, percebo que aflora uma clarividência ativa que se instaura nos meus sistemas e promptamente recalibra os parâmetros dos meus sentidos. Agora já não apenas vejo, mas viso, ouço, escuto, ausculto, pego, agarro, inalo, capto, engulo. Mas também enxergo, leio, assunto. Infiro. Defiro. Por fim, entro.
Poucos parágrafos adiante, um primeiro labirinto já se configura à minha frente. Logo à entrada, o protagonista parece que já me aguardava. Sem que nada precise ser dito, fico sabendo que ele se chama Diégane Latyr Faye, que é um jovem escritor, que é senegalês, que vive em Paris, que está empenhado em decifrar a vida e a obra genial de um escritor misterioso – e talvez também atrás de respostas para alguns dos seus próprios dilemas artísticos e crises existenciais.
Sem nenhuma cerimônia, ele me toma pela mão e me conduz para dentro. É um labirinto bastante humano, esse. Mundano, urbano: suas veredas e trilhas se estendem e serpenteiam entre ruas, avenidas, trilhos, vias e outros logradouros em Paris, Amsterdã, Berlim, Buenos Aires, Dakar e alguns domicílios nas profundezas do continente africano. Com a desenvoltura de quem conhece muito bem esses cenários, Diégane me conduz por apartamentos, salas, quartos e gabinetes onde se trava a dura labuta dos autores oriundos das ex-colônias francesas em território africano para serem percebidos e admitidos pelos salões da alta literatura europeia.
Após mais alguns passos nesse labirinto, Diégane nos faz parar diante de um espelho que reflete outros espelhos, onde ele vê um jovem escritor senegalês que vive em Paris, que narra a história de um jovem escritor, também senegalês, que vive em Paris e trabalha para se estabelecer no restrito e prestigioso círculo literário francófono - que, por sua vez, está pesquisando a história de um jovem e talentoso escritor senegalês que viveu em Paris décadas atrás, conhecido pelo pseudônimo T. C. Elimane. Este, todavia, foi alguém que logrou sobressair no rigoroso e seletivo círculo literário francófono, ao publicar em 1938 o romance O labirinto do inumano. Um livro icônico que, em síntese, narra a história de um Rei que aceitou queimar todos os idosos do seu reino em troca do poder supremo prometido por uma profecia. Contudo, as cinzas desses corpos foram semeadas no entorno do seu castelo, e dali cresceu uma sombria e labiríntica floresta. Considerado de início uma obra genial, de primeira grandeza, não apenas pela originalidade do enredo como pela ousadia e inovação da linguagem, estilo e lirismo filosófico, o livro não demorou, porém, a ser atacado - pela austera e inflexível crítica literária de então - com acusações de plágio e outros pecados imperdoáveis, levando o seu autor a desaparecer da cena cultural europeia sem deixar rastros. Tornou-se lenda, virou tema cult para as gerações de escritores que o sucederam. Nesse ponto, já se tornava impossível, entre tantos reflexos e ecos de vozes sobrepostas, distinguir quem ali era Diégane, Elimane, Madag, Ouologuem, Sarr.
Após essa pausa, avançamos um pouco mais e logo me dou conta de estar imerso numa rede mais ampla e complexa de labirintos interpostos, transpostos e justapostos que vão compondo e tecendo uma estrutura narrativa aparentemente caótica. O enredo tramado por Sarr vai sobrepondo vozes e passeando pelo tempo e pelo espaço sem a menor responsabilidade lógica, cronológica ou geográfica. E aqui me parece inevitável uma rápida alusão, dado o paralelismo, à abordagem formal de Juan Rulfo em Pedro Páramo - pois ambos parecem não se constranger de evocar fantasmas literários e históricos que habitam as diversas dimensões culturais e existenciais em que seus personagens transitam.
Parece que Sarr não se contenta em apenas narrar uma história, pois se empenha também em mobilizar o leitor, na companhia de Diégane, ao trabalho de detetive – homenageando assim Roberto Bolaño, autor do clássico Os detetives selvagens, de onde extrai o texto da epígrafe e toma por empréstimo o próprio título do seu romance. Cada capítulo engendra um novo enigma. Uma charada que tanto instiga quanto desorienta, fazendo revelar a complexidade dos inúmeros personagens que passeiam por suas páginas, e das camadas de subtextos, inferências e ilações que os compõem.
Desse modo, o protagonista-narrador, que se empenha em desvendar a trajetória do enigmático escritor desaparecido, se debate também com os desdobramentos e consequências em sua vida decorrentes de sua busca obsessiva. Ele representa, pois, o desejo inato de compreensão, a vontade de olhar além da superfície e descobrir o que há por trás dos mitos e das histórias de nossa cultura. Sua busca não é apenas pela verdade sobre o autor de O labirinto do inumano, mas também uma investigação sobre o próprio ato de escrever, sobre os desafios, as febres e os gozos que acompanham a criação literária, retratando-a por vezes como um processo trabalhoso, uma luta constante entre o que se deseja transmitir e o que realmente se consegue expressar. Em várias passagens, o autor sugere que a escrita é uma forma de resistência, uma maneira de reivindicar espaço e, ao mesmo tempo, um confronto com os próprios demônios interiores. Diégane, ao descrever os seus próprios passos, avanços e frustrações, tenta de certo modo ordenar esse caos, até por fim reconhecer que o caos é inevitável, é inerente à própria experiência humana, é também um dínamo ontológico dando movimento e sentido à vida. Sobre isso, em sua passagem pela Flip 2024, Sarr comentou:
“É isso que eu também queria colocar no coração deste romance, para que, seja geograficamente, circulando no labirinto, ou temporalmente, historicamente, digamos variando as épocas, sempre haja essa noção de caos. Mas o caos, mais uma vez, é a vida para mim, é realmente o que não para de se mover.”
[Mohamed Mbougar Sarr, Paraty, 12/10/2024]
Acompanhando de perto a jornada de Diégane, é preciso considerar que ele não apenas percorre espaços físicos, mas igualmente psicológicos e emocionais. Ele atravessa muros invisíveis, que separam culturas, línguas e experiências. Essas barreiras são, em grande medida, os ecos e as cicatrizes das antigas feridas coloniais, que continuam a influenciar e moldar as percepções de identidade, pertencimento e reconhecimento literário. O romance, então, assume um tom de denúncia sutil, questionando os cânones estabelecidos e a persistente resistência que os autores africanos enfrentam para serem aceitos nas esferas tradicionais da literatura europeia.
Nesse aspecto, podemos dizer que a narrativa de Sarr procura explorar a interseção entre ficção e realidade, apresentando uma narrativa que suscita a reflexão sobre outros romances e sobre a literatura em geral, como num labirinto de espelhos múltiplos. A mais recôndita memória dos homens é, de certa forma, uma obra dentro de outra, que leva a desdobramentos sucessivos, percorrendo sinuosas trilhas de referências literárias, culturais e históricas, envolvendo-nos com inúmeras camadas de simbolismos e metáforas que se entrelaçam para criar uma tapeçaria de significados.
A persistir nesse caminho, vemos que a jornada do autor misterioso percorre um itinerário aparentemente paradoxal: um escritor que atinge o ápice da criação literária para logo ser tragado pelas consequências da própria genialidade. Do sucesso e popularidade conquistados à deserção e fuga diante da batalha - pois em face de uma luta inglória e inútil, a seu ver, uma vez que não se fez compreender em sua intenção original -, optando por retornar ao casulo seguro da sua solidão. Desse modo, a história narrada nos convida a reconhecer a fugacidade do conceito de glória e o destino irrecorrível de esquecimento e alienação da memória a que toda obra humana parece estar fadada.
Diégane prossegue, sempre impulsionado por uma vontade de preservar o que já foi perdido, um eco do passado que ele se esforça para reviver. Em sua busca, ele descobre não só as falhas do sistema literário que marginalizou o escritor desaparecido, mas também as forças ocultas da memória coletiva que sustentam e destroem heranças artísticas e culturais. Ao dispor-se a rastrear o legado do escritor desaparecido, ele se depara com um dilema: deve seguir os passos de seu ídolo e conterrâneo, correndo o risco de se perder da mesma forma? Ou deve criar um caminho próprio, resistindo à pressão de se conformar aos moldes da tradição literária predominante? Essa tensão é palpável ao longo do romance, conferindo à narrativa uma camada adicional de complexidade, onde nos vemos igualmente divididos entre o fascínio pelo mistério e o receio pelo destino do protagonista.
Assim, A mais recôndita memória dos homens nos lembra do poder da literatura de transcender fronteiras, de nos fazer enxergar o outro e a nós mesmos de uma nova perspectiva. É um livro que não apenas desafia, mas também inspira, que transforma a leitura em um ato de exploração e autoconhecimento. Tal como Diégane, somos levados a questionar nossa própria cosmovisão, a enxergar o mundo com olhos mais críticos e a reconhecer a beleza e a complexidade de histórias que merecem ser contadas e lembradas. Como o protagonista do romance de Sarr, vemo-nos também diante dos dilemas do artista que se encontra na intersecção entre o desejo de autenticidade e originalidade inventiva e as pressões do reconhecimento, da legitimação por pessoas e instituições que nem sempre compreendem a profundidade das vivências, dores e intenções criativas transcritas em cada obra e, claro, da lógica consumista do mercado que, do alto do seu poder superior, decide quem merece a notoriedade e quem simplesmente não precisaria nem sequer existir.
No seu percurso pelos labirintos em que vai-se enfronhando, Diégane às vezes se descobre diante de novos espelhos - reais e metafóricos – onde ele confronta ora o reflexo de suas próprias ambições, ora as feições sisudas das suas dúvidas e medos, suas angústias. São inúmeros os momentos da narrativa em que o personagem vai consolidando a percepção de que a sua peregrinação na trilha do escritor desaparecido é, na verdade, uma caminhada em direção a si mesmo. Os espelhos devolvem-lhe fragmentos da sua imagem, repletos de incertezas e contradições, levando-o a questionar sua própria identidade como escritor africano vivendo na Europa e procurando pelo sentido de um legado que ele não escolheu, mas que de certa forma lhe foi imposto pelas suas raízes históricas e culturais.
A questão do plágio, que assombra e põe em risco até mesmo a existência (física e histórica) do escritor desaparecido e permeia a investigação de Diégane, levanta também uma reflexão sobre originalidade e autenticidade. Sarr funda, desse modo, a sua própria universalidade, tornando-se ele próprio também objeto da linguagem que inaugura, e desafia a ideia de que uma obra pode ser inteiramente “pura” ou “original”, questionando criativamente os alicerces da criatividade. Afinal, todo escritor é, de certo modo, uma soma de influências, de vozes que o antecederam, das referências que sedimentaram a sua cosmovisão e o seu senso de responsabilidade para com o seu tempo e os seus contemporâneos, suplantando as limitações impostas pela sociedade e pelos cânones literários vigentes.
Com uma escrita apolínea, densa e de alta plumagem poética, Sarr cria uma atmosfera quase mística, onde o real e o onírico se entrelaçam. O romance é uma viagem ao desconhecido, ao subterrâneo da alma humana, onde cada palavra parece carregada de significados ocultos. Somos o tempo todo convidados e desafiados a desbravar essas profundezas, a nos perdermos no labirinto narrativo e, eventualmente, a encontrar fragmentos de nós mesmos refletidos nas suas paredes e passagens.
A mais recôndita memória dos homens é um romance sobre o poder da literatura de transformar e libertar, mas também de questionar os nossos mais elementares impulsos de expressão e significação. A jornada de Diégane, assim como a do próprio autor, é uma tentativa de transcendência, de encontrar uma voz que ressoe pelos corredores do labirinto e que nos permita ir além das fronteiras impostas por incidentes como origem, idioma ou contexto histórico. Sarr nos lembra que a literatura, como a vida, é um campo de batalha onde se luta pela própria identidade, e essa luta, mesmo que dolorosa, é essencial para que possamos existir plenamente.
Ao fechar o livro, percebo que aquelas operosas borboletas continuam esvoaçando nas proximidades, que jamais se afastaram e que me acompanharam, à distância e quase imperceptíveis, ao longo dessa viagem pelo extraordinário livro de Mohamed Mbougar Sarr. Comparto com elas o quanto essa obra me sensibilizou, provocou, comoveu, me fez levitar, trazendo à luz o que em mim mais se agudiza, extrapola, ultravasa. E constato, enfim, que não se tratava apenas da narrativa de um personagem cativante, um ente ficcional transitando em seu labirinto, mas de um texto que soube fazer ebulir – com a potência de que somente as grandes obras de arte são capazes – e revolver as minhas mais recônditas inquietações, os meus dilemas mais profundos acerca da criação literária e das minhas próprias tentativas no curso do tempo - ainda que encontre apenas respostas provisórias, tão inconclusivas quanto as interrogações que pretendiam elucidar.
Floripa/Paraty, outubro de 2024