Na entrada do labirinto ele já me aguardava. Saltitante, todo elétrico, os cabelos esvoaçantes e artificialmente encarapicolados, num pique no lugar lindo de se ver. Magro, muito alto (o dobro da minha altura, pelo menos!), aquele corpo delgado malcoberto com uma mínima tanga vermelha, sempre saltitandinho: seria realmente de se ver.
Assim que eu chego, então, ele vem e dá um passo adiante, iniciando uma demorada e cerimoniosa reverência. Em retribuição, eu o cumprimento também. Com uma discreta inflexão na incidência do meu olhar sob o seu, de baixo pra cima, ajeitando os óculos, eu o cumprimento. Com isso, nesse breve interlúdio, nessa diplomacia ágil e vespertina, nós nos cumprimentamos: cumprimentamo-nos, então.
Após abrir o grande portão atrás de si, ele se vira outra vez pra mim e me estende uma das mãos. Enorme, essa mão, porém muito delicada. Eu vou e simplesmente a tomo. [Ou será que é ela, essa mão extensiva e poderosa, que vem e a mim já me toma?]. De súbito, um puxão. Com um tranco seco, ele faz com que nós nos movamos. Firmemente engajados um no outro, num emaranhado de resistências e colaborações em mútua interação, nós nos deslocamos rápido, cada qual tracionado pela mão do oponente. Logo atravessamos o portão e entramos no corpo do labirinto.
Dá-se, então, um corre daqui, desce dali, desliza pra lá, vira pra cá, sobe à esquerda, acessa acolá, vai ao fundo, cai à direita, sai por ali, toma um retorno, volta por lá, naquele complexo de escadas, corredores, antecâmaras e postigos, ambientes estreitos, altos, fundos, amplos e compactos, ao mesmo tempo contíguos e cambiantes, cuja dimensões de profundidade, altura e largura são impossíveis de se calcular.
Depois de poucos avanços, nos perdemos um do outro. Durante um bom tempo, fico vagando sem noção, sem norte nenhum. Mas, como os sons se propagam muito limpidamente aqui dentro, os ecos das nossas passadas ressoam a distâncias incalculáveis. E, desse modo, conseguimos nos localizar e nos direcionar para onde cada um acredita que o outro esteja. Sentimos a proximidade das nossas cabeças. Mas ocorre que, em geral, nesses momentos nós estamos com os pés em bases divergentes quanto ao plano, ou simplesmente opostas, oblíquas, perpendiculares uma em relação à outra. A surpresa recíproca é tal, que saímos correndo em direções opostas.
Enquanto corro, vou cogitando se isso poderia durar assim para sempre, isto é, cada qual seguindo até o fundo da sua solidão, sem saber se há um depois; ou, ainda, se seria esse um destino irrecorrível, definitivo.
Contudo, chegou o momento em que nos reencontramos novamente, cara a cara [ou quase isso, dada nossa enorme diferença de estatura]. Quer dizer: ele me encontra. O importante, porém, é que ambos deliberamos que, daqui por diante, ele é quem deverá nos conduzir. Então ele me olha, convocante, e simplesmente faz-me ir após si. E sim, e só. Eu o sigo, correndinho – como se felídeum resolutus fôssemos.
O Sinfonímbalo é um tipo de ser que se desembaraça bem no campo do espaço. Locomove-se com uma desenvoltura eficaz, implacável, que resolve. Dá para considerar, até, que ele está muito autonaturalmente adaptado ao ecossistema labirintístico. Pois assim vamos: ele me puxando, mais pelo escândalo da sua cabeleira volumosa do que pela mão – pois mal nos tocamos, sua mão enorme apenas guiando a minha. É, enfim, a sua gadelha revolta que me instiga, que me traciona. Sigo-a. Ele vlói rápidis, penetrandem labirintis adentrum. E eu nele me fio. Um tanto voluntária, outro tanto ingenuamente.
Há muitas salas interessantes neste quadrante do Salão. Ele me mostra uma a uma, não deixando de enfatizar um detalhe ou outro que ele acredite que mereça a minha atenção. (Como, por exemplo, aquela em que está em curso um estranho julgamento; ou uma outra, em que vejo a plateia lotada de um enorme anfiteatro ser engolida pelas chamas; e outra e outra). Mas ele não quer que eu entre em nenhuma delas, por mais convidativas e atraentes que me pareçam. Prefere que eu exerça meu direito de não-escolha.
O labirinto é pouco, portanto, para os seus movimentos. Pois ele corre tanto e com tamanha desenvoltura que não dá para duvidar de que saiba o que está fazendo. Seus passos são seguros, dominados por extraordinária convicção. E seguem um ritmo pensado, uma sequência prevista e previamente programada.
No mesmo sentido em que ele corre, então, eu o acompanho. Sua cabeleira ensolarada – reflorida de restos de coroas antigas, de reinos desde sempre inexistentes – drapeja desfraldada, alegórica como flâmulas ou bandeiras afins, e me permite acompanhá-lo já bem de perto. Essa gadelha é o único fato em que confio (e ainda assim desconfiando), neste momento.
Entramos então na próxima à esquerda e logo nos deparamos com uma parede enorme. Ele para, olhando ao mesmo tempo para trás, para mim, para assegurar-se de que eu estou atento. E, apenas esticando o braço através dela, demonstra que a parede é imaterial, transponível. Aquela e todas as demais do labirinto, agora me dou conta! E a transpassamos prontamente, ambos: primeiro ele, depois eu.
Apareço, então, na entrada do labirinto. Percebo que ele se aproxima. Está vindo, está vindo. Merda, não consigo parar de saltitar. É que ele parece que se demora. Fico ansioso.
Quando chega, por fim, eu faço questão de saudá-lo com respeitosa reverência. Observo como ele é baixinho. Mal alcança a minha cintura. Tem as suas pernas e seus braços – até os cotovelos – cobertos por umas coisas esquisitas, coloridas. Usa aros ao redor dos olhos, com lentes que rebrilham conforme a incidência da luz. Nos pés, um revestimento de tecido branco e azul, com uma sola alta e de algum material muito macio.
Lá de baixo, ele me olha meio atônito, meio curioso, intranquilo. Mas capturo nesse olhar um sinal de resposta à minha iniciativa, o que interpreto como o seu cumprimento. Cumprimentamo-nos, assim.
O Sinfonímbalo, conto publicado em Perpetuocontinuum [2005], com texto atualizado em março de 2024.
Um abraço,
Cláudio Dutra.
Parabéns, caro amigo Cláudio, pelo excelente conto!
Ao fazer a leitura desse conto fantástico, apegando-me à interpretação livre do meu pensamento, percebo que somos levados a uma reflexão profunda sobre a condição humana. O labirinto que o Sinfonímbalo e nosso protagonista enfrentam ecoa nossa própria jornada pela vida, um ciclo contínuo de exploração e descobertas. A mudança física do Sinfonímbalo me fez refletir sobre as múltiplas perspectivas que podemos adotar ao longo da nossa trajetória na vida. Essa capacidade de mudança nos convida a questionar se realmente estamos presos nas limitações que imaginamos. Talvez, assim como o Sinfonímbalo ao transpor as paredes do labirinto, também possamos enfrentar os desafios da vida com coragem e determinação no embalo de uma sinfonia sublime. Quem sabe, no fim das contas, a vida não seja tão complexa quanto a imaginamos? kk Gostei demais!