Juan Rulfo: no cerne e no vértice do realismo mágico
Notas e impressões da leitura de Pedro Páramo
“El conocimiento de la obra de Juan Rulfo me dio el camino que buscaba para mis propios libros. Siempre vuelvo a releerlo completo, y siempre vuelvo a ser la víctima inocente del mismo asombro de la primera vez. No son más de trescientas páginas, pero son casi tantas y creo que tan perdurables como las que conocemos de Sófocles. Así es mi admiración por Rulfo.”
[Gabriel García Márquez, Vogue, 1981]
Tantas vezes me deparei com aquele olhar oblíquo de Pedro Páramo, desafiando-me lá das alturas, da galáxia dos grandes clássicos. Contudo, somente após percorrer longas elipses e demoradas aproximações foi que me entusiasmei de forças para encará-lo. Tomei-o, então – e dei-me a ele. E venho agora aqui, no Lunário do Farol, compartilhar brevemente algumas das impressões e reflexões nascidas dessa experiência de imersão no primoroso – e único – romance de Juan Rulfo.
O meu propósito é sobretudo reverenciar esse escritor fundamental, cuja projeção e reconhecimento no cenário internacional, conquistados pela originalidade e potência disruptiva de sua obra, foi um dos estopins da grande eclosão da literatura latino-americana para o mundo, principalmente a partir da década de 1960. Admirado e assumido como referência e inspiração pelos maiores nomes da narrativa de ficção fantástica e do realismo mágico, como Gabriel García Márquez, Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e muitos mais, esse livro monumental continua impactando e influenciando gerações sucessivas de escritores e escritoras por toda a parte – incluídos aí todos os mestres dos nossos mestres. Sua leitura, portanto, é o tipo de experiência da qual ninguém jamais sai ileso.
Primeiro, que não é um livro fácil, de acesso gratuito ou apenas tangencial. Não se entrega assim, sem mais, ao olho apressado. Reclama atenção máxima, concentração total, interesse pleno. Por breve, poético ou mesmo singelo que pretendesse aparentar, trata-se de algo outro, definitivamente outro.
E, depois, tem ainda a circunstância de que tanto já foi dito e escrito a seu respeito que resulta praticamente inviável uma abordagem que não se restrinja a ecoar os elogiosos reconhecimentos já cristalizados pela historiografia da literatura do século XX. Eric Nepomuceno, no prefácio à sua tradução para a edição brasileira de Pedro Páramo e Chão em Chamas da Ed. Record, de 2004, calcula que “o que se escreveu sobre Juan Rulfo reúne pelo menos cinquenta vezes mais páginas de tudo que ele deixou como legado”. Por isso, além das incontornáveis alusões à obra – seu enredo, personagens, estrutura, etc. (mas evitando spoilers a todo custo, pra não privar ninguém do prazer insubstituível da leitura) –, penso que cabe destacar também alguns detalhes e aspectos que me sensibilizaram de modo especial, o que mais me descentrou ou instigou a minha curiosidade. Enfim, o que melhor recompensou o tempo e a atenção – ou seja, o tanto de minha vida – que nele investi.
Segurando numa das mãos o volume impresso, o indicador inserido entre as páginas 24 e 25, dirijo-me à área de embarque. Com as antenas especulativas ativadas e os receptores estéticos arrepiados de excitação, mas sem qualquer sintoma de ansiedade ou pressa, embarco e me acomodo na minha poltrona pré-designada. Assim que zarpamos e começamos a nos afastar da costa – mas ainda sem coletes, boias, tubos ou máscaras de oxigênio, nem salvaguardas outras quaisquer –, transfiro-me para a beirada lateral da embarcação. Ainda em movimento, eu simplesmente me lanço de costas e mergulho na matéria fria e gelatinosa das suas letras, sílabas, frases, diálogos, parágrafos, páginas. Afundo-me por completo em sua calda pulsante, placenta cosmogônica que me acolhe em seu elemento primordial. Nem respiro mais, pois já não necessito. Abro os olhos: estou em Comala.
Ao tocar com os primeiros pés a crosta do seu solo árido, desértico – ainda que imaginário, ficcional –, e mesmo sabendo que estamos no interior do México, tenho a irresistível autoilusão de estar entrando numa cidade cenográfica daqueles westerns spaghetti que povoam a nossa imaginação desde a adolescência. A vista, tomada a partir de planos baixos – sob o filtro de Sergio Leone, com arpejos e assobios de Ennio Morricone –, seguindo pequenas esferas de galhos secos, esturricados, que atravessam as ruas poeirentas do vilarejo desabitado, onde o vento fraco se entretém com rodamoinhos incipientes, sempre conduz a um horizonte desolado, tudo compondo um panorama triste, de abandono. Por ali, todavia, já não transitam os Brynners, Fondas, Van Cleefs, Bronsons, Coburns, Eastwoods, sempre de olhar enigmático e muito perigosos no gatilho, mas a gente humana, simples, humilde, silenciosa e sofrida pela dureza da vida rural mexicana da primeira metade do século XX. Pessoas reais que inspiram personas fictícias, cujas aventuras e desventuras se articulam e se confundem com as de Pedro Páramo, até desenharem por completo a jornada épica da sua ascensão, glória e decadência.
Para essa “vila sem ruídos” nos transporta um primeiro narrador, Juan Preciado – ele próprio o protagonista dos acontecimentos que passa a descrever. Logo ficamos sabendo, então, que ele vai em resgate de um compromisso assumido – por total ausência de alternativas – diante de sua mãe, Dolores, no leito de morte, partindo em busca do pai que jamais conheceu e ao encontro das raízes de seu passado obscuro. [Aqui não tenho como contornar a lembrança, ainda vívida, da jornada de Samuel nos primeiros parágrafos de “A cabeça do santo”, de Socorro Acioli, cuja leitura comentei nesta edição do Lunário do Farol].
Ali chegando (e nos levando com ele), Juan Preciado descobre que esse tal Pedro Páramo, seu pai, havia morrido há muito tempo. Contudo, mesmo sem se dar conta, embrenha-se numa jornada de descoberta e reconstituição da história daquele homem misterioso – que afinal se revelará o verdadeiro protagonista da narrativa – e, por extensão, das pessoas de Comala. Fica sabendo que Páramo, do alto de sua personalidade imponente e magnética, fora potentado, senhor e tirano absoluto de uma imensidão incalculável de terras naquela região (no estado mexicano de Colima), onde também a pequena vila estava situada. Uma entidade geopolíticoeconômica de alcance transcendente com o nome de Media Luna, que vivera dias de grande opulência e poder, mas que entrara em declínio, arrastada ao infortúnio pela tristeza autodestrutiva de seu proprietário, afetando extensivamente a cidade e seus moradores. Em seu caminho, Juan Preciado se depara então com um mundo insólito, sombrio, uma vila amaldiçoada e povoada por fantasmas. Um lugar onde transcorrem as situações mais bizarras e absurdas como se fizessem parte do cotidiano, e onde o cotidiano mais banal se reveste de tons e contornos fantásticos, fabulosos, maravilhosos: características que estão no cerne e na essência do realismo mágico. Assim, na sucessão de encontros e conversas com pessoas da vila e da região, praticamente todos já mortos, que conheceram Pedro Páramo ou tiveram com ele alguma relação de convivência, vai-se delineando um painel completo e complexo da sua vida e dos dias passados em Media Luna e em Comala.
Mas Juan Preciado só consegue conduzir a narrativa até um ponto em que a sua voz começa a ser interditada e intercalada por outras. Primeiro pelo relato das lembranças de Eduviges, amiga de juventude da sua mãe. Em seguida, do nada, aparece outro narrador – agora objetivo, impessoal – apresentando uma cena, aparentemente solta, lá da infância de Pedro Páramo. Depois seguem-se o relato da morte e enterro de seu filho, Miguel Páramo, décadas mais tarde; a voz doce de Dolores descrevendo a Media Luna em seus dias mais felizes; as detalhadas reminiscências de Damiana Cisneros; a luta do padre Rentería contra a sua própria consciência, por haver pecado, tanto por covardia quanto por ganância; a presença ostensiva e operosa de Fulgor Sedano; as loucuras de amor de Susana San Juan – e as de Pedro Páramo por ela. Enfim, muitas outras vozes e locuções se vão sucedendo e se acumulando, acrescentando densidade e dimensão aos personagens e ampliando os horizontes dos acontecimentos, compondo um panorama plurívoco e polifônico.
Há avanços e recuos no tempo, deslocamentos colaterais, memórias múltiplas em perspectivas assimétricas, projeções em flashback, falas entrecruzadas e diálogos assíncronos, recortes, jogos de espelhos, colagens. O curso dos eventos se desenvolve em camadas de cenas e sequências épicas ou dramáticas dispostas de modo que acontecimentos de momentos distintos do passado, assim como suas causas e seus efeitos, possam existir em simultâneo e interagir com ações e descrições somente possíveis em determinados ângulos do presente. Os personagens que por ali se encontram – e se desencontram – parecem transitar comodamente entre um instante e outro do calendário inconstante que os sustenta, perambulando entre o mundo dos vivos e o dos mortos com a tranquilidade de quem atravessa a rua numa tarde ensolarada.
Como uma catedral submersa de arquitetura imprevisível que vai sendo elaborada e esculpida diante dos nossos olhos, o enredo do romance vai se estruturando numa combinação complexa, caleidoscópica, de cenas sonâmbulas e soturnas – mas igualmente lúcidas, reveladoras. A evolução das várias subtramas se desdobra numa desordem aparentemente caótica, mas que aos poucos vai convergindo até moldar um desenho claro e inteligível, descortinando um cenário plausível onde as pessoas, os animais e as coisas, tanto presentes como ausentes, passam a ter suas razões para existir e ali estar. Dalguma altura em diante (impossível precisar desde onde), começam a aparecer as elucidações e respostas, numa articulação exata, em encaixes simpáticos perfeitamente moldados para as lacunas que haviam ficado em etapas anteriores, até constituírem um panorama inteiro coerente, significativo. A história toda se descortina, então. E, de uma vez só, caem todas as fichas, pois tudo se ajusta, o todo faz sentido.
Chega a parecer mesmo como se eu estivesse sentado no centro do anfiteatro dessa catedral, sob tantas águas, cercado por centenas de vozes muito diversas e variadas recitando em simultâneo suas estrofes, refrões e solos que aos poucos vão se organizando, articulando e combinando cada vez mais, até seu canto se tornar algo plausível, agradável aos meus ouvidos – até alcançar a harmonia pura e definitiva. Ou seja, até eu finalmente entender direitinho quem foi esse tal Pedro Páramo, quem foi quem em Comala e Media Luna e porque tudo se deu do modo que se deu. E então, quando essa mágica acontece, tendo o volume aberto na página 173 e ainda processando essa experiência tão impactante, fecho os olhos até enfim voltar a respirar e constatar que já me encontro em terra firme outra vez.
DIGRESSÕES:
Sobre Juan Rulfo e sua obra, uma miríade de escritores, críticos e estudiosos da maior competência e representatividade refletiram e registraram seus elogios mais entusiásticos e apaixonados. Quero adicionar aqui, às palavras de Gabriel García Márquez, apenas as expressões de Jorge Luis Borges - para quem Pedro Páramo resulta “una de las mejores novelas de las literaturas de lengua hispánica, y aun de la literatura” - e de Susan Sontag, que lhe dedicou um alentado ensaio em seu livro Questão de ênfase (Ed. Cia. das Letras, 2005). Para a escritora, crítica e filósofa norte-americana, “O romance de Rulfo não é apenas uma das obras-primas da literatura mundial do século XX, mas também um dos livros mais influentes do século. [...] Pedro Páramo é um clássico no sentido mais verdadeiro da palavra. É um livro que, em retrospecto, dá a impressão de que tinha de ser escrito. É um livro que afetou de maneira profunda a criação literária e continua a ressoar em outros livros”.
Ainda acerca da importância de Juan Rulfo para a literatura, considerada esta como feito sobretudo artístico, recomendo o citado prefácio de Eric Nepomuceno à edição de Pedro Páramo e Chão em chamas da Ed. Record, sob o título “Anotações sobre um gigante silencioso”. Entre as muitas peculiaridades desse enigmático escritor mexicano mencionadas por Nepomuceno, a sua escassa produção bibliográfica (cerca de 440 páginas, incluindo o romance Pedro Páramo, os contos de Chão em chamas, além de fragmentos de roteiros e argumentos para cinema, notas para conferências e até poemas) logo me fez pensar nos nomes dos mestres brasileiros Raduan Nassar, Campos de Carvalho e Murilo Rubião, igualmente módicos em volumes publicados, mas definitivos em seu legado literário. Demonstrando, assim, de forma cabal, que o gênio se revela, mais do que no montante de textos publicados, na originalidade e na relevância artística da literatura compartilhada com o seu tempo e com a posteridade.
Links interessantes:
Filme “Pedro Paramo”, dirigido por Carlos Velo, de 1967:
Filme “El gallo de oro”, de Manuel Barbachano Ponce, de 1964 – com argumento original de Juan Rulfo e roteiro de Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez e Roberto Gavaldon:
Filme: “Pedro Páramo – el hombre de la Media Luna”, de 1977, dirigido por Jose Bolaños, com música de Ennio Morricone:
Episódio do programa mexicano “Cine Secuencias” sobre a Série “Cien años com Juan Rulfo”, dirigida por seu filho Juan Carlos Rulfo:
Programa “Literatura fundamental”, produzido pelo Estúdio UNIVESP, especial sobre Juan Rulfo, com a Professora Laura Janina Hosiasson (USP):
“Juan Rulfo en 10 reflexiones de Gabriel García Márquez.”
Artigo de Iara Machado Pinheiro no Jornal Rascunho (Ed. 249, de jan de 2021) sobre os 65 anos da publicação de Pedro Páramo.
Transcrição de um - hipotético e de autenticidade controversa – diálogo entre Jorge Luis Borges e Juan Rulfo, que poderia ter ocorrido na Cidade do México, em 1973.
Verbetes sobre Juan Rulfo e Pedro Páramo na Wikipedia.
Muito obrigado pela sua leitura!
Um abraço,
Cláudio Dutra
Floripa, 28/05/24