Socorro Acioli: a fabulação entre o real e o maravilhoso
Notas de leitura dos livros A cabeça do santo e Oração para desaparecer
“O maravilhoso começa a sê-lo, de maneira inequívoca, quando surge de uma inesperada alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de um destaque incomum ou singularmente favorecedor das inadvertidas riquezas da realidade, ou de uma ampliação das escalas e categorias da realidade, percebidas com particular intensidade, em virtude de uma exaltação do espírito, que o conduz até um tipo de ‘estado limite’. Antes de tudo, para sentir o maravilhoso é necessário ter fé.”
(Alejo Carpentier, O reino deste mundo, Prefácio)
O trato com o transcendente, o fantástico, o maravilhoso é sempre um acontecimento exponencial e reconfigurante na vida de qualquer um, humano que seja. E quando isso transcorre pela mediação mágica da arte, da experiência fenomênica – e ontológica – propiciada pela obra de arte, temos aí então aqueles momentos que fazem valer os nossos dias e que põem sentido à existência que vivemos.
Da minha parte, afortunadamente, tenho conseguido conviver, até com razoável frequência, com a boa arte, em muitas das suas manifestações – e um pouco mais intensamente com a boa arte literária. Entre as descobertas mais recentes, em meio a tantos textos, autores e autoras lindamente originais, potentes e interessantes que o Brasil não para de produzir, vejo sobressair a prosa inspiradíssima de Socorro Acioli, que anima e dá substância aos seus romances A cabeça do santo e Oração para desaparecer – cujas impressões de leitura venho aqui compartilhar.
A cabeça do santo
A dança delicada, quase felina, das suas palavras sobre a página captura o movimento do olho e assume a direção das sinapses: faz-se ler. A narrativa é ágil, sinestésica, pulsante. Evoluindo a partir de uma premissa insólita, incabível nos contornos do quadro que o senso comum convencionou chamar de “realidade”, a trama avança no terreno da fábula, do inusitado, do maravilhoso – amoldando-se com facilidade ao cânone da mais legítima literatura fantástica.
Já nas cenas iniciais, assim que o pano se abre, identificamos o protagonista – e com ele nos identificamos. A urgência das suas agruras e padecimentos nos sensibiliza e nos arrebata, então, da indolência: põe-nos em movimento. Com isso, a autora nos leva a passear pelos labirínticos jardins da sua inquieta e inventiva imaginação. Ou, mais exatamente, pelos insondáveis caminhos do sertão nordestino brasileiro. E por aí seguimos, encantados ora com os personagens, ora com os cenários ou com as peripécias que se sucedem, mas expectantes pelo que ainda está por acontecer. Parece, mesmo, que escrever inícios perfeitos é uma de suas especialidades, como observa Valter Hugo Mãe em seu Instagram (aqui), a propósito de A cabeça do santo.
Manejando os instrumentos e recursos narrativos com mãos de cirurgiã e operando a linguagem com apurada precisão, Socorro Acioli nos leva, pelos 30 capítulos de A cabeça do santo – curiosamente, todos iniciando com a consoante “C” –, a acompanhar o percurso do jovem Samuel pelo interior do Ceará. Assim, ficamos sabendo que em 16 dias ele caminhou quase 100 km – de Juazeiro do Norte até a cidade ficcional de Candeia – a fim de atender ao último pedido de sua mãe no leito de morte.
Após essa viagem, ele ainda precisou experimentar muita dor, padecer fome e sede, enfrentar a febre, tendo inclusive que morar no oco da cabeça de uma estátua de santo – que, por falha humana, permaneceu inacabada. Até quando, incidentalmente, descobriu-se capaz de algo incomum, inusitado, maravilhoso. Um poder sobre-humano, de cuja existência jamais suspeitara: ali, dentro daquela cabeça, Samuel conseguia ouvir nitidamente as preces que as devotas de Santo Antônio lhe dirigiam. Assim, após ter efetivamente facilitado ou encaminhado alguns casamentos, ele começou a ficar famoso e a tornar-se admirado por toda a região. Candeia reagiu e ganhou um novo sopro de vida, com a exploração dos serviços dedicados ao atendimento das levas de romeiros que passaram a procurar o oráculo milagreiro.
Esse movimento todo na pequena cidade, porém, contrariava os interesses de alguns poderosos locais, que se voltaram contra ele, obrigando-o a fugir. Por fim, nessa nova etapa da sua jornada, ele precisará descobrir o seu verdadeiro propósito e algum sentido para a sua existência.
Ainda que a premissa central soe – e seja – inverossímil (a habilidade supra-humana de Samuel, quando dentro daquela cabeça – que, longe de ser um dom divino, era primeiramente um incômodo, depois fonte de renda e fama) e que os acontecimentos narrados transbordem as fronteiras do plausível, é sabido também que a sua ficcionalização parte de uma inspiração situada no real, presente no mundo objetivo. Na pequena cidade de Caridade–CE (aproximadamente 100 km distante de Fortaleza–CE), existe, de fato, uma enorme cabeça de Santo Antônio, à semelhança da que é descrita no romance, junto ao muro de uma casa pobre, num bairro periférico. Enquanto isso, no alto de uma colina, nas cercanias da cidade, o corpo incompleto da estátua decapitada não discerne a sucessão das estações, não distingue os dias das noites. No mais, daí por diante, tudo é história, lenda, ficção.
Ora, essa transposição do cotidiano ordinário ao puramente ficcional, do piso da mais elementar concretude à fluidez etérea de um universo livremente imaginado, e tendo ainda que preservar uma inteligibilidade e uma consistência racional mínimas no fluxo do relato, enfim, esse transe crítico corresponde a um dos mais pedregosos e seletivos desafios da ficção fantástica. Mas esse é, também, o efeito estético que traz alguns dos momentos mais prazerosos ao leitor, quando executado com a perícia e a acuidade adequadas – como é o caso, evidentemente, aqui.
No trabalho de fabulação das ações, reações, escolhas e suas respectivas consequências (dramáticas, cômicas, trágicas) no entorno do protagonista, Socorro Acioli vai administrando o desdobramento da trama, ao mesmo tempo em que inocula, sem alarde nem escândalo, o germe do insólito na tecitura do enredo.
Penso, então, que talvez seja na conjunção das qualidades intrínsecas ao protagonista, Samuel, com a singularidade da sua epopeia de autodescoberta e crescimento interior, que se concentra o veio principal da energia que sustenta e move a narrativa. É dessa seiva, suponho, que se abastece a força vital que modula e governa a dinâmica das alternâncias entre o real e o fictício, entre o fracasso e o êxito, entre o sofrimento e a redenção.
Samuel consuma essa transposição, portanto, ao evoluir a sua percepção a partir daquela “cabeça” (apenas uma enorme esfera vazia, feita de tela metálica trançada e camadas de cimento sobrepostas) para ingressar na “mente” do santo (instância abstrata, palco imaterial dos esforços de interlocução dos seus fiéis em busca de algum milagre ou outros servicinhos personalizados). É por seu intermédio, pois, que se faz o trânsito entre a dimensão imediata do mundo vivido (aqui, agora) e o universo ilimitado do imponderável, do atemporal, do fantástico – sempre sob a fiança da fé pública e as bênçãos da crença popular nos milagres e em seus agentes, tão próprias da profunda brasilidade presente no romance.
Tais acontecimentos e circunstâncias, todavia, só se efetivam e se tornam acessíveis para nós, leitores, mediante o contato com o produto da fabulação e da criação literária. Isto é, por meio das palavras que a autora escolhe, organiza e dispõe diante dos nossos olhos.
Trata-se, afinal, de um momento de transcendência, do encontro imediato e imersivo com a realidade de um mundo outro, que não mais este. Experimentamos uma espécie de abdução momentânea e voluntária do nosso presente cotidiano, migrando – mesmo que transitoriamente – toda a nossa atenção para o espetáculo que se desenvolve e transcorre numa dimensão alternativa, que não mais aquela em que estávamos. Juntamo-nos, então, a Samuel. Entramos com ele naquela cabeça e nos sentamos ao seu lado, à espera das vozes, rezas e cantos. E tudo, então, desse momento em diante, passa a ser outro, tudo novo, diferente, mais colorido, fluido, poético – por graça e obra da poderosa arte literária de Socorro Acioli.
Oração para desaparecer
Uma narrativa que inicia pela vívida descrição de uma experiência de ressurreição humana, o desenterro de uma pessoa que regressa da morte – e não sendo obra dogmática, teológica ou confessional, mas pura ficção literária – já chega ocupando um lote imenso no condomínio do meu interesse. Uma centelha de estranhamento faz arder o estopim da curiosidade. E enquanto os ecos dos primeiros impactos ainda percutem entre os meus tímpanos, apenas sigo adiante, para logo constatar que a premissa central, a que sustenta e dá corpo ao enredo, propõe simplesmente isso: a existência de humanos “Ressurrectos”, quer dizer, “[p]essoas que iam morrer, mas por um triz escaparam, e voltaram à vida em outro lugar” (parte I, Cap. 2).
É o caso, por exemplo, da protagonista de Oração para desaparecer, romance de Socorro Acioli, lançado pela Ed. Cia. das Letras em 2023. Uma jovem mulher que se vê sendo desenterrada por mãos estranhas, num lugar que ela sente ser muito diferente e distante das suas origens. Volta à vida, mas não exatamente à “sua” própria vida, pois no percurso do processo parece que perdeu a memória, zerando todos os registros de dados anteriores ao seu desenterro – ou ressurreição. Pelas semelhanças – e diferenças – da sua própria língua com a que se fala em seu entorno, ela se descobre uma brasileira que, sem atinar como nem por quê, foi aparecer no interior de Portugal, numa vila chamada Almofala.
Sem identidade, sem lembranças e sem passado, ela necessita até mesmo de um nome (pois “estar vivo é ser palavra na boca de alguém” – parte I, Cap. 12), para poder “existir” e estar em sociedade. Decidiu, então, que se chamaria Aparecida dos Reis – ou apenas Cida, conforme a ocasião – e adotou um passado inventado por um carismático falsário, um angolano albino de nome Félix Ventura – de larga folha corrida, protagonista do romance O vendedor de passados (Ed. Tusquets, 2018) de José Eduardo Agualusa, que Socorro Acioli tomou de empréstimo, claro que sob as bênçãos e licenças do seu criador.
Tentando integrar-se à sua nova vida, Cida conhece Jorge, um charmoso moçambicano de raízes portuguesas. Apaixonam-se e logo as suas vidas se entrelaçam. Um novo futuro parece estar começando. Porém, após um certo tempo ela passa a recuperar mais e mais fragmentos de suas lembranças. Até que, desejando preencher algumas lacunas importantes, resolve viajar para o Brasil, fazendo-se acompanhar por Jorge. Aportam na costa nordestina, seguindo até uma vila litorânea que – coincidentemente – se chama Praia de Almofala, no município de Itarema–CE.
Ali, enquanto Cida vai ao aldeamento local dos tremembés, em busca das suas raízes mais profundas, Jorge conhece o biólogo Miguel, com quem começa um interessante diálogo. Agora quase octogenário, Miguel revela ter ido parar em Almofala há muitas décadas, durante uma pesquisa relacionada a cavalos-marinhos. E jamais saiu. Testemunhou acontecimentos estranhos na cidade, como o soterramento da igreja pelas dunas trazidas pelo vento e a disputa por uma imagem de Nossa Senhora da Conceição entre eclesiásticos portugueses e os tremembés locais, que resultou na morte de Joana Camelo, líder dos indígenas – embora o seu corpo jamais tenha sido encontrado. Miguel confessa, ainda, que Joana havia sido o grande amor da sua vida. A Jorge, fica evidente então que Joana é ninguém menos do que a sua ressurrecta Aparecida.
Assim, ao invés de nenhuma, ela teria agora duas identidades: Aparecida e Joana. Uma só mulher que, voltando da morte, passara a ter duas vidas para viver. Ou talvez mais, pois havia ainda o universo incomensurável dos tremembés. Seu berço e seu lar desde sempre, em cujo seio a sua presença também se fazia necessária e uma nova vida aguardava por ela. Caminhos a escolher, consequências com que lidar, verdades por descobrir.
É com essas diretrizes narrativas e dramáticas que a autora governa as expectativas e a ansiedade do leitor: cadenciando a sequência dos acontecimentos – com suas causas e efeitos – num lento pêndulo entre a tensão e a distensão, o mistério e a descoberta. Tudo embalado e entregue numa linguagem leve, de fácil acesso e compreensão imediata. Ainda que ocasionalmente, talvez a título de recompensa aos mais atentos, aporte reflexões densas, criativas e relevantes, apresentadas nos formatos de aforismos, axiomas ou sentenças lapidares – onde o sentido se faz sentir. Não deveria surpreender, portanto, o grande êxito de público que a obra vem alcançando, sob o endosso uníssono de autores e críticos entre os mais respeitáveis da literatura contemporânea, em todos os continentes.
Conquanto apoiada em fatos, eventos e circunstâncias extraídas da experiência real, tal como em A cabeça do santo – pois há Almofalas em Portugal e no Brasil; e, sim, uma igreja que permaneceu por décadas encoberta pela areia das dunas no litoral cearense –, não é nada difícil deduzir que os fios da trama de Oração para desaparecer são mesmo tecidos nos teares do insólito, nas fábricas do imaginário. Basta observar e assuntar a ideia-tronco, a matriz conceitual que motiva, inspira e movimenta a narrativa: a experiência de uma pessoa que ressurge da morte e empreende a busca pelo seu próprio passado, e todos os desdobramentos dramáticos dessa premissa.
Forjada e aprimorada literariamente na melhor tradição da ficção fantástica latino-americana, a escrita de Socorro Acioli carrega, também, a marca de uma brasilidade rica, profunda e multifacetada. Uma escrita na qual o cotidiano sofrido e a intensa capacidade de esperança das pessoas se condensam numa religiosidade fundante, capaz de engendrar uma realidade alternativa. Uma realidade sabidamente inverossímil, fabulesca, embasada na crença popular nos milagres e nas intervenções divinas, mas assumida coletivamente como uma realidade vigente – talvez por ser mais suportável ou apetecível do que aquela outra realidade dada.
Por isso, mesmo evitando as tentações e armadilhas reducionistas da classificação, não deixo de observar que, com razoável frequência, tem-se apontado Socorro Acioli como uma herdeira legítima do realismo mágico – talvez pela sua conhecida participação naquela oficina de criação literária ministrada por Gabriel García Márquez, da qual resultou, como se sabe, A cabeça do santo. No entanto, numa entrevista ao podcast Página Cinco, ela própria sugere que a expressão “realismo mágico” parece estar superada e que, a seu ver, a noção de “realismo animista” (que pressupõe, em suma, a indiferenciação ontológica das experiências humana, animal e espiritual na elaboração e ficcionalização do real), formulada pelo escritor angolano Pepetela e praticada também por outros importantes autores, principalmente afrolusófonos (mas também muitos brasileiros e portugueses), se aproxima da descrição mais adequada para posicionar-se no contexto da literatura contemporânea. Resulta, por fim, que é uma questão secundária (acerca dessa classificação, a qual precisaria considerar ainda uma certa aproximação, penso, com o “real maravilhoso”, tal como proposto por Alejo Carpentier) a ser desenvolvida talvez em outro espaço e oportunidade, pois é um terreno movediço, no qual não pretendo me aprofundar. Fica, portanto, apenas o registro do meu interesse meramente colateral por esse tópico.
Em último caso, o que posso concluir, depois dessas intensas e potentes leituras, é que, mesmo nesses tempos tenebrosos – de censura e de ataques à liberdade criativa –, ainda assim a grande arte, as melhores obras da grande arte literária, como são os romances de Socorro Acioli, por exemplo, conseguem encontrar o seu caminho como a água entre as pedras, para continuar fluindo sob os nossos olhos, fertilizando a nossa imaginação, florindo os nossos dias, justificando a nossa humanidade.
Floripa, 03/04/24