Além das admiráveis qualidades literárias e da sua enorme relevância historiográfica para a compreensão da saga do povo haitiano, o romance O reino deste mundo, de Alejo Carpentier, é portador também de uma importante contribuição ao desenvolvimento da literatura fantástica.
Já no prefácio, Carpentier traça um paralelo entre as abordagens europeia e americana do fantástico na literatura, a fim de demonstrar que a limitação do fantástico europeu (moldado sob o racionalismo cartesiano e, por isso mesmo, incapaz de expressar autenticamente uma “realidade maravilhosa”) se deve principalmente à ausência do elemento “fé” na sua composição e estrutura.
“[…] o maravilhoso começa a sê-lo, de maneira inequívoca, quando surge de uma inesperada alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de um destaque incomum ou singularmente favorecedor das inadvertidas riquezas da realidade, ou de uma ampliação das escalas e categorias da realidade, percebidas com particular intensidade, em virtude de uma exaltação do espírito, que o conduz até um tipo de “estado limite”. Antes de tudo, para sentir o maravilhoso é necessário ter fé.”
[O reino deste mundo, Prefácio]
Partindo, então, da abundância de fé, convicção mística e convívio assimilado com o sobrenatural, desde sempre presentes nas ontologias ameríndias, potencializadas pelas cosmogonias panteístas de matriz africana e condimentadas com um catolicismo ibérico tropicalizado, Carpentier apresenta uma nova corrente na literatura fantástica: o real maravilhoso: um estilo de criação literária único e universal, que só germina e prospera, segundo afirma, no caldo cultural, histórico e antropológico do continente americano.
O romance acompanha a jornada de Ti Noel, um africano escravizado que vive no Haiti, então uma colônia francesa, na transição do século XVIII para o XIX. A narrativa se desenvolve sob o seu olhar, presenciando os principais eventos que antecedem à grande revolta que culminou, em 1804, na abolição da escravatura e na independência do Haiti, até o período pós-colonial, passando pelo reinado — e queda, em 1820 — de Henri Christophe, primeiro monarca a ser coroado no continente americano.
No decurso dos acontecimentos, o insólito vai-se imiscuindo no fluxo do real filtrado pela fé mística e pela crença nos poderes do voduísmo, cultivado pelos escravos — que acreditavam, e testemunhavam, que certos humanos podiam se transformar em animais (licantropos) e outros que seriam capazes de prodígios e feitos miraculosos. Nesse contexto, as fronteiras entre o real e o fantástico se dissolvem, originando uma realidade maravilhosa, em que o sobrenatural se mescla sem sobressaltos à normalidade cotidiana consensual.
“Dotado do poder de transformar-se em animal de cascos, em ave, peixe ou inseto, Mackandal visitava constantemente as fazendas da Planície para vigiar seus seguidores e saber se ainda confiavam no seu regresso.”
(O reino deste mundo, pg. 22)
Mackandal, o licantropo
Ao ler Carpentier, em nossos dias, e ao pensar mais detidamente no drama secular que vive o povo haitiano, que ainda persiste em sua busca por liberdade, paz e prosperidade — ora se defrontando com a brutalidade da violência política, ora sofrendo dolorosas perdas sob a fúria da natureza (terremotos, tsunamis, incêndios florestais, secas, furacões, tempestades tropicais, enchentes) —, é impossível não evocar o universo temático do premiado livro Morte Sul Peste Oeste, de André Timm (Ed. Taverna, 2020).
Tecida com grande habilidade e perícia, esta pungente narrativa — que já teve anunciada a sua transcrição para o cinema — descreve e acompanha as desventuras de um cidadão haitiano, Dominique Baptista Monfiston, que emigra para o Brasil em busca de trabalho e renda que lhe permitam enviar ajuda à família que lá deixou. Aqui, porém, ele só encontra a exploração, o desprezo, o preconceito, a marginalização. Para alcançar a sua redenção, afinal, ele precisará contar com outra personagem também marginalizada, a adolescente transexual Brigite, igualmente humilhada e subvalorizada pela mesma sociedade. Ambos terão muito mundo a enfrentar, em seu percurso - e muito o que aprender, a cada passo.
Ainda que a literatura de Timm não se amolde aos contornos — ou aos limites — da ficção fantástica, o diálogo entre essas obras me parece bastante plausível, inevitável mesmo. Pois, após a leitura de Carpentier, não é nada difícil imaginar que a carga de dores, angústias e aflições que pesa hoje sobre Dominique não seria muito diferente daquela que carregava, em seus dias, o escravo liberto Ti Noel. A conexão se estabelece pelo compartilhamento do mesmo fundo histórico e antropológico por ambas as narrativas. Ainda que separados por mais de setenta anos, o Haiti descrito por Alejo Carpentier explicita e dimensiona, sob certo aspecto, muitos dos motivos do protagonista de André Timm haver transposto, no início da segunda década do século XXI, as fronteiras da sua pátria, saindo ao mundo - vindo ao Brasil - em busca por socorro e salvação. Nos dois casos, pulsa um apelo, uma nota de súplica por dias mais pacíficos e talvez mais felizes.
Floripa, 12/05/2023