O mundo fantástico do mago Rubião
Notas e digressões sobre a literatura do mestre Murilo Rubião
Murilo Rubião, reconhecidamente um dos escritores mais originais, inventivos e ousados da literatura em língua portuguesa, um dos fundadores do realismo mágico na ficção fantástica brasileira e um dos seus mais notáveis expoentes, sempre mereceu um lugar especial entre os meus autores favoritos. Há pouco concluí a leitura da sua Obra Completa (Ed. Companhia das Letras, 2012, Epub). Foi uma ótima oportunidade para reencontrar alguns dos seus contos mais célebres – lidos e relidos desde décadas – e também para descobrir, com prazer e espanto renovados, uma boa dúzia de narrativas que eu ainda não conhecia, muitas delas carregadas daquela energia vulcânica, daquela potência borbulhante de vida nova com que somente a grande arte literária pode nos tanger, mobilizar, comover. É sobre essa experiência de leitura, e uma ou outra digressão, que vou orientar o olhar do meu farol neste lunário de hoje.
Sempre acreditei ser portador de uma dívida irresgatável para com algumas das minhas professoras e alguns professores – e para com a minha mãe, mestra da vida inteira, mais do que a todos – entre outras coisas, pela formação do meu interesse por boas leituras e pelos estímulos à vazão da minha curiosidade. Mas o meu débito é ainda maior para com aqueles (mestres, amigos e colegas) que me aproximaram – além dos clássicos ao alcance da mão, em casa ou na escola – também de leituras incomuns, fora da régua, ainda que transgressoras, polêmicas ou simplesmente indecifráveis pelas normas e sistemas então vigentes.
Com isso, para além da bibliografia curricular, às vezes nos deparávamos – estudantes de segundo grau lá no interior do meio-oeste de Santa Catarina – com obras e autores novos (para nós, claro!), alguns deles inquietantes, impactantes, surpreendentes, que tanto nos deleitavam quanto nos faziam refletir. Podíamos sentir – mas certamente jamais conseguiríamos descrever – o impacto estético, artístico ou a repercussão política, ética, filosófica daquelas tardes caseiras de leitura e muita música, música boa!, na construção daquilo que viríamos a nos tornar, cada qual de nós. Foi, portanto, ali pela segunda metade da década de 1970 e início dos anos 1980, ainda sob os ecos do boom do fantástico latino-americano, que nos vimos expostos ao contato com os primeiros movimentos do realismo mágico brasileiro, a começar pelos contos do mago Rubião.
As suas narrativas compactas, enxutas, exatas, mas ao mesmo tempo densas, opulentas, adiposas de fantasia, ensopadas de absurdo, tramadas em tecido fictício, fundidas em material insólito, já desde logo criam um estado de alerta “diferente” na gente. Algo como que um desconforto não de todo incômodo, que provoca apenas uma comichãozinha entre os neurônios, principalmente porque o absurdo, o insólito, o fantástico se inserem de um modo quase imperceptível na “realidade” de cada universo ficcional, às vezes nos induzindo à sensação de haver perdido algum detalhe da história. Mas, não. Em geral, não era isso. Era a maneira como o texto nos era apresentado, seus paradoxos, disparates, suas ironias: o anacrônico entrando pelas frestas da percepção, não por nenhuma ação ou reação no fluir da trama.
Os seus enredos, que parecem resultar apenas do livre exercício da imaginação criadora, sem quaisquer compromissos racionais prévios, rescendendo a mirabolâncias descabidas e irreverências descarrilhadas das ideias, rapidamente cativam a atenção do leitor. Em contrapartida, os seus protagonistas – que são sempre ou quase sempre humanos apenas humanos – convivem e contracenam lacônica e impassivelmente com outros personagens nem sempre humanos, muitas vezes imersos em situações improváveis, inverossímeis, implausíveis, inaceitáveis, reagindo sem a menor perturbação, escândalo ou comoção. Para mim, parecia como se os personagens de Rubião prescindissem de toda empatia, simpatia ou reciprocidade, de quem quer que fosse.
Em seus mundos, nos mundos que Murilo Rubião cria, tudo é tocado e transformado pela magia da palavra, tudo vira outra coisa; embora, às vezes, depois desvire e se retransforme em si mesmo, num passe de voluptuosa prestidigitação literária que, ao final, deixa ainda fiapos e resquícios de assombro, enlevo e deslumbramento flutuando e vagando pelo ar. Quero crer que é, mais ou menos, a esse tipo de efeito estético a que se referia o grande mestre da crítica literária brasileira Antônio Cândido, ao destacar:
“O que é impressionante no Murilo, é que ele conseguiu criar um tom de absoluta normalidade para dizer a anormalidade. Ele não solicita o leitor para o insólito. Ele faz o leitor se sentir ‘normalmente’ dentro do insólito.”
[Antônio Cândido: em vídeo para o Centenário Murilo Rubião, 2016].
Se a prosa de Murilo Rubião é transgressora, portanto, ela o é principalmente pelo seu conteúdo (ou seja, nos domínios do significado). Pois, no quesito forma, território do significante, a sua opção se inclinou desde cedo pela narrativa breve, mais precisamente pelo conto, adotando-o como veículo prioritário da sua arte. Quando me refiro à forma, aludo àquela propriedade física dos signos (res extensa) que lhes permite, a partir de certa organização, codificação e disposição, produzir a objetivação dos mundos e personagens imaginados sobre a página (impressa ou digital), franqueando-nos o acesso a eles. Quando falo de conteúdo, refiro-me àquela substância pulsante que verte do nada (e que apenas passa pela imaginação e pelo trabalho objetivo do autor) e vem se alojar nas camadas mais internas do texto, trespassando-o na direção do seu núcleo, em busca do seu centro de ressonância, a fim de transportar o leitor para o contexto dos universos ficcionais criados, sua “realidade” e seus habitantes. Quer dizer, para Rubião, a mensagem não está nas marcas rupestres plasmadas na parede da caverna, mas no reconhecimento da existência legítima dos seres (reais ou não) que elas pretendem representar.
Uma das peculiaridades mais interessantes da biografia de Murilo Rubião é que a sua obra literária é composta quase que exclusivamente por contos, “cerca de cinquenta em toda a sua vida, e trinta e três deles selecionados para seus livros”, segundo informa a nota introdutória (“Vida e obra de Murilo Rubião”) à Obra Completa publicada pela Ed. Companhia das Letras. Por isso – ainda que não haja, obviamente, uma medida quantitativa adequada para se avaliar a representatividade literária de um autor (afinal, com quantos gênios de obra única a Arte já não nos presenteou!) –, parece mesmo incrível que, com tão exíguo volume de textos de criação literária publicados, a obra de Murilo Rubião tenha conquistado tamanha e tão duradoura reputação.
Sem dúvida, a resposta só pode situar-se na qualidade dos seus textos. Sem pretender revolucionar ou transcender às formas canonizadas do conto, Rubião especializou-se nesse formato de narrativa breve. Mas soube imprimir, indelevelmente, a sua marca pessoal de originalidade, destacando-se em especial pelo apuro na imaginação do enredo, investindo no inusitado, no surpreendente, apostando na imprevisibilidade inflexível da trama. A busca ostensiva e obsessiva desse estado da arte em sua escrita, experimentada sob a forma de um perfeccionismo minimalista, talvez explique porque “não é à toa que ele tenha reescrito e republicado muitos de seus textos ao longo da vida. [...] O cuidado extremo com a linguagem tornou-se fundamental para entender a essência de sua obra: a maneira como o fantástico aparece nos contos”, como acentua a mencionada nota de introdução ao volume da Obra Completa (grifos meus).
Talvez isso também esclareça um pouco mais acerca da sua aparente despreocupação com a quantidade ou o volume da sua produção literária. Ou, ainda, talvez possa também sinalizar porque Rubião se absteve de frequentar, pelo menos enquanto criador, as outras formas literárias próximas ao conto, como o romance, a novela – sem falar da poesia, a cuja plasticidade a sua linguagem colorida e sofisticada facilmente se afeiçoaria. Quanto ao exercício da crônica, por certo se devia em grande parte à sua intensa atividade jornalística, que abraçara desde a juventude. O consenso, todavia, é que Murilo Rubião se afirmou como um dos grandes mestres do conto fantástico brasileiro.
Entre os seus contos mais conhecidos, O pirotécnico Zacarias certamente é aquele que se vincula de modo mais direto e imediato ao nome do seu autor. Esse é o conto que dá título ao livro lançado em 1974, cujo sucesso projetou e consolidou Murilo Rubião entre os grandes nomes da literatura brasileira do século XX.
Narrado em primeira pessoa pelo próprio Zacarias, um artista pirotécnico que, tendo morrido atropelado, continua ironicamente existindo e interagindo com o mundo à sua volta, como se vivo ainda fosse – um pouco à moda de Brás Cubas, a meu ver, um pouco à de Quincas Berro d’Água. “Em verdade morri, o que vem ao encontro da versão dos que creem na minha morte. Por outro lado, também não estou morto, pois faço tudo o que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormente”, pondera o defunto-narrador (O pirotécnico Zacarias, Ed. Ática, 1974, pg. 14). Sua jornada se desdobra enquanto ele simultaneamente reflete sobre a vida e participa ativamente – nesse estado improvável, ambíguo, meio morto, meio vivo – de uma interessante discussão com os ocupantes do automóvel que acabara de matá-lo atropelado. No final – arrematado com fios de prosa poética –, restam ao leitor o aroma do insólito e um halo de encantamento.
Outro conto já considerado clássico na bibliografia de Murilo Rubião, que rivaliza em popularidade e predileção do público com O pirotécnico Zacarias, é O ex-mágico da Taberna Minhota, publicado pela primeira vez (com pouquíssima repercussão, à época) em 1947. Sua narrativa é apresentada por um funcionário público que, por não aguentar mais as inconveniências e os constrangimentos decorrentes dos efeitos colaterais da sua profissão de mágico (cuja carreira havia se iniciado com as apresentações na Taberna Minhota), mas da qual perdera o controle, produzindo involuntariamente fenômenos e prodígios imprevisíveis a cada instante, decide abandoná-la de uma vez por todas. Sobre o desfecho, para não drenar-lhe o sabor, pouco se deve dizer do muito que propõe a pensar.
Numa aventura cheia de nuances e sutilezas, o conto Os dragões parte da chegada desses seres mitológicos a uma cidade, vindos do nada. De pronto, por serem muito temidos e pouco compreendidos, são segregados. Porém, após algum tempo, eles são liberados e entregues a um educador – que é quem narra a história. Depois de educados e de passarem a se comportar como os homens, os dragões acabam por seguir caminhos desastrosos.
“Como jamais tivesse ensinado dragões, consumia a maior parte do tempo indagando pelo passado deles, família e métodos pedagógicos seguidos em sua terra natal. Reduzido material colhi dos sucessivos interrogatórios a que os submetia. Por terem vindo jovens para a nossa cidade, lembravam-se confusamente de tudo, inclusive da morte da mãe, que caíra num precipício, logo após a escalada da primeira montanha. Para dificultar a minha tarefa, ajuntava-se à debilidade da memória dos meus pupilos o seu constante mau humor, proveniente das noites mal dormidas e ressacas alcoólicas.”
[Os dragões, em Obra Completa, Murilo Rubião, Ed. Cia. das Letras, Epub, 2012].
Assim como nos contos A cidade, O edifício, O lodo, A fila, A armadilha, O bloqueio, O convidado e mesmo em O homem do boné cinzento, por exemplo, Rubião exercita um dos seus traços mais impressionantes: a capacidade de manter uma linha de tensão contínua, esticada do começo ao final da narrativa, num tom às vezes lacônico, às vezes irônico – habilidade por muitos associada ao perfil kafkiano (para alguns, pré-kafkiano) da sua prosa (muitas vezes sem desfecho, outras tantas sem solução).
Em outras narrativas, observo prevalecer um clima de sensualidade, de expressão do desejo pelo feminino, em que os personagens são movidos ou transportados por paixões e afetos afins, às vezes indo até as últimas consequências por sua causa. É o caso, entre outros, de Bárbara, Ofélia, meu cachimbo e o mar, A flor de vidro, Teleco, o coelhinho, A casa do girassol vermelho, Marina, a intangível, Memórias do contabilista Pedro Inácio, Bruma (a estrela vermelha).
Entretanto, em todos os casos o que sobressai é o seu pleno domínio da forma breve: o tom, o ritmo, o humor, o corte, o laço, o desenlace. Não sem razão, o mago Rubião tornou-se mestre reverenciado pelos maiores entre os maiores das gerações que o sucederam.
“Por sua obra literária, Murilo Rubião recebeu o Prêmio Othon Lynch Bezerra de Mello (1948), conferido pela Academia Mineira de Letras, e o Prêmio Luísa Cláudio de Sousa (1975), do PEN Club do Brasil. Além disso, seus contos foram traduzidos e publicados em diversos países, como Alemanha, Argentina, Bulgária, Canadá, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, França, Itália, México, Noruega, Polônia, Portugal, República Tcheca e Venezuela. Desde a década de 1970 até o presente, suas narrativas vêm sendo adaptadas para o cinema (“A armadilha”, “O pirotécnico Zacarias”, “O ex-mágico da Taberna Minhota” e “O bloqueio”) e para o teatro (“A lua”, “Bárbara”, “Os três nomes de Godofredo”, “Memórias do contabilista Pedro Inácio” e “O ex-mágico da Taberna Minhota”).
[Fonte: www.murilorubiao.com.br/index.php/vida-biografia] – Ao que acrescento, ainda, a animação adaptada de “O ex-mágico na Taverna Minhota” e o lançamento do filme “O lodo”, de Helvécio Ratton, em de abril de 2023.
Enfim, para quem queira conhecer – ou reencontrar – um autor fora da curva, acima da régua, capaz de provocar estranheza, inquietação, perplexidade com a sua ficção insólita e fantástica, mas também capaz de produzir enlevo, descoberta, encantamento, com a sua abordagem única e inusitada, sua prosa transgressora, fundadora e praticante do realismo mágico, certeza absoluta que Murilo Rubião é satisfação garantida.
Como sempre, faço questão de sublinhar que aqui não se tem a pretensão de produzir crítica literária, elaborar análises técnicas apuradas ou coisas assim. Senão apenas compartilhar as minhas impressões e observações de leituras que me proporcionaram momentos interessantes e felizes, com o propósito sobretudo de estimular o contato com obras e autores que eu aprecio, admiro e recomendo.
Por fim, muito obrigado!, sempre e sempre, pela sua paciência, atenção e leitura.
Um abraço,
Cláudio Dutra
Floripa, 03/07/2023
Envergonhada, admito que nunca li o autor. É impressionante como quase não se passa um dia sem que eu tome contato com referências, inclusive consagradas como ele, que nunca cruzaram meu caminho antes. Pelo menos, não que me recorde. Vasto universo, o da literatura. Tanta coisa linda e a gente com tanta coisa chata pra fazer. rs... Hoje mesmo passei um tempão cuidando de burocracias, quando preferia estar lendo ou escrevendo. Dá vontade de dar uma de Bartleby, às vezes. Ah, e pra variar já comprei o volume da Cia. no Kindle e vou começar a ler os contos, pra não passar mais vergonha.
Conheci Murilo Rubião por meio dessa animação do Maurício! Linda demais! Adorei!