A eloquência dos silêncios em Han Kang
Notas de leitura do romance A Vegetariana, da vencedora do Nobel de Literatura de 2024
Certos livros se parecem com as árvores: dizem mais nos seus silêncios e sussurros do que conseguem expressar os sons que borbulham na superfície das palavras. Silêncios que não silenciam, não emudecem, mesmo depois de concluída a leitura. Para além do DNA da celulose, as ressonâncias das suas verdades ancestrais permanecem percutindo na nossa memória, às vezes na nossa pele, durante tempos e tempos ainda. A Vegetariana, de Han Kang, por exemplo, propicia esse tipo de experiência e percepção.
Sua leitura vai além da mera captura racional e decodificação linguística das mensagens grafadas sobre a página. Seus ecos prolongam-se entre os neurônios, verberando nas membranas da nossa sensibilidade, traduzindo-se em espanto e lucidez. Produz uma desconfortável sensação de deslocamento infra-racional, de avanço irrefreável para a beirada de algum penhasco. Uma angustiosa tensão crescendo sempre, sem freios ou limites às consequências possíveis - num combate sem regras da imaginação contra o estômago -, talvez no mesmo diapasão e intensidade que observei, por exemplo, no romance Kentukis, de Samanta Schweblin (as notas você pode ler aqui), e em alguns contos de As coisas que perdemos no fogo, de outra estrela da literatura contemporânea, a também argentina Mariana Enriquez (aqui).
O romance – que consagrou a autora sul-coreana como uma das mais importantes escritoras do nosso século, distinguida com o Premio Nobel de Literatura em 2024 – se desdobra em três movimentos, como uma flor que desabrocha ao toque da luz solar. Cada parte é narrada por um outro – o marido, o cunhado, a irmã – que não a própria protagonista, Yeonghye. Pois, no curso de sua jornada em direção à mais completa desumanização, ela demonstra mesmo preferir manter-se ausente da própria história, isenta de saber-se de si ou de ter que dar satisfações a quem quer que.
Após ter tido sonhos em que constatou a inaceitável crueldade humana contra os animais, Yeonghye comunica ao seu marido que não mais comerá carne. A inusitada decisão inaugura então um processo autodesconstrutivo de recusa e dissolução: da linguagem, do corpo, das expectativas alheias, da condição humana. Ela altera, com isso, o padrão de comunicação com o mundo à sua volta. Ou, mais precisamente, com isso ela se isola do burburinho e das influências do ambiente exterior, voltando-se para dentro da sua concha silenciosa.
A sua mudez deliberada logo começa a incomodar aos seus entes próximos – marido, familiares, conhecidos. E isso também nos inquieta, pois talvez seja esse o seu gesto mais radical: praticar o silêncio num mundo que exige fala, resposta, reação, contestação, opinião, réplica, tréplica. Contudo, Han Kang – tal como a sua obstinada protagonista – não nos apresenta quaisquer esclarecimentos ou explicações. Oferece, quando muito, o desconforto do enigma como impulso e desafio à descoberta.
Mas se trata sobretudo de uma escolha literária, logo se vê. Observada sob uma perspectiva de similaridade ou paralelismo, é possível conjeturar que Yeonghye repercute ecos de outros personagens icônicos que também ressoam em seu silêncio ensurdecedor, cada qual a seu tempo e seu modo, nas câmaras mentais do leitor. O artista da fome, de Franz Kafka, por exemplo, também renuncia a todo alimento. Embora se deva notar que, enquanto Kafka expõe o seu artista ao desprezo do público por ele por sua arte, Han Kang conduz a sua protagonista ao ato inflexível de negar o seu próprio corpo ao olhar alheio, enrustindo-se num silêncio selvagem, primitivo, precedente à linguagem.
E, claro, sempre que falamos em recusa simples, direta e unilateral a qualquer interação, ordem, comando ou designação vinda de um “outro”, o personagem que logo se impõe para mim é o escrivão Bartleby, de Herman Melville. Mesmo que por razões bastante distintas, a postura de ambos é igualmente definitiva, terminante, irrevogável. E acredito, ainda, que também seria possível fazer alusão a uma identificação, por mais colateral que possa ser, com Raskólnikov, de Fiódor Dostoiéviski, posto que, conquanto suas ações divirjam em direção (ele avança e mata; ela retrocede e se ausenta), ambos transpõem as fronteiras de uma dimensão ontológica limítrofe, separando-se da comunidade dita humana e aprofundando-se cada um nos seu próprio pântano ético-existencial.
Assim, numa lenta metamorfose, a protagonista vai se convertendo em algo vegetal, arbóreo, pois o seu fluxo de crescimento deixa de se dar para cima, para fora, e passa a convergir para dentro de si mesma. O corpo de Yeonghye vai se tornando outro, uma estrutura biológica atravessada por rizomas, ramas e raízes. E essa transformação, todavia, é mais ritualística do que metafórica.
Enfim, num ambiente contaminado pela violência psicológica, econômica e social, cujos vínculos interpessoais não passam de interpretações superficiais de papeis previamente definidos, ela decide desumanizar-se como conduta de resistência. Resiste a ser tocada, a ser considerada ou mesmo designada por um nome humano – e já não mais por um arbítrio próprio, mas por uma necessidade irrecorrível. Pela contingência de existir de outro modo. Idealmente, segundo a sua convicção, como uma árvore: sem pedir licença, sem precisar justificar sua presença, apenas sendo aquilo que é. Pois,
“As árvores são santuários. Quem sabe falar com elas, quem sabe ouvi-las, descobre a verdade.”
[Hermann Hesse]
E mesmo quando nos damos conta de que a narrativa se concluiu, percebemos que algo continua pulsando, algo silencioso mas obstinado, como os segredos que somente as árvores sabem preservar. Algo vivo, como uma semente que teima em germinar, fazendo força para existir.
Até que, afinal, esse silêncio desabroche em flor e o mundo finalmente volte a ser aquilo que sempre foi: o nosso velho mundo de sempre, só que agora mais amplo, opulento e complexo.
Cláudio Dutra
Floripa, abril 2025
Ótimas reflexões. De fato este livro diz muito no silêncio. Participo de um grupo gratuito de leitura dedicado à autoras de insólito/horror (Mão Esquerda) e coincidentemente temos um encontro no dia 10.04, no qual discutiremos "A vegetariana". A mediadora das leituras é a Larissa Prado. Se quiser se inscrever, segue o link: https://forms.gle/SnJoz6AvHMHeQka26
Excelente resenha. Fui abduzido para dentro do livro!