Ali está o sujeito, aquele. Digamos que o seu nome seja Fulano (embora pudesse ser Beltrano, Sicrano ou eventualmente outro qualquer). Seu escritório ocupa todo o décimo quarto andar do prédio. Sua sala privativa, situada na face leste, que dá para a praça, é bastante ampla, bem iluminada, agradável. A sobriedade dos móveis, a harmonia dos poucos objetos decorativos, o tecido das cortinas dialogando com a padronagem do tapete, enfim, tudo parece estar ali disposto de modo a produzir uma sensação de conforto, estabilidade, segurança.
Ele se levanta, então, e vai até a janela. De lá, com o auxílio de uma luneta bem posicionada ele observa o movimento na rua aqui embaixo. O trânsito, os transeuntes, o comércio, os serviços, a logística. A cidade e seus afãs. A praça, suas árvores, bancos, pombos, vendedores e passantes. Entretanto, nem os odores das ruas nem os sons urbanos o alcançam lá no seu refúgio. Apenas o murmuriozinho monótono do ar-condicionado se esgueirando entre as frestas do silêncio rugoso que a tarde transpira.
Com pequenos ajustes no seu equipamento óptico, ele focaliza melhor a rua, o fluxo de veículos, depois volta-se para a praça com o chafariz ao centro, algumas pessoas sentadas nos bancos, os pombos debicando a calçada à cata de grãos, insetos e quitutes afins. Os atarefados que atravessam com pressa. Omundoandando, enfim. Até que, percorrendo o ambiente, ele me flagra aqui, sentado neste banco. E quando constata que eu daqui o observo também, que faço anotações numa caderneta de capa escura, já quase posso pressentir o rubor subindo-lhe às faces, suas orelhas esquentarem. Ele ficará ali ainda mais alguns instantes, com as bochechas ardendo, os lábios inchados e luzidios, mas com o olhar retido, prisioneiro daquela inquietante revelação: eu aqui na pracinha, sentado, a inventá-lo, escrevendo no meu caderninho. A tarde segue seu percurso, o tempo parece propício.
A campainha do telefone interrompe suas conjecturas. É a secretária, dona Camélia - ou Dália, Tulipa, Orquídea, Bromélia, Petúnia ou… em todo caso, a última a permanecer no escritório, já que todas as mesas e postos de trabalho por todo o andar estão agora vazios, abandonados - anunciando que o doutor Victor (ou Hector, Ramón, Alcides, talvez Renato ou Raoul, tanto faz) acaba de chegar.
Quando o doutor entra, cumprimentam-se muito tecnicamente e logo se põem frente a frente, sentados junto à pequena mesa de despachos, sob a simpática luminária de acrílico lilás que os acolhe em sua luz acetinada. A conversa é breve, objetiva. São tópicos relacionados a dívidas, fraude, insolvência, impostos sonegados, prazos, divórcio litigioso, perda de patrimônio, processos cíveis e criminais, eventualmente privação da liberdade, talvez sanções mais graves até. Mas nada disso parece representar grande novidade para ele, que permanece impassível. Ambos são precisos em suas falas e gestos, econômicos nos comentários, práticos e concisos. Dando-se afinal por satisfeito em sua missão, o doutor levanta-se, faz uma breve reverência e se retira.
Novamente sozinho, ele regressa à escrivaninha e se reacomoda na poltrona. Abre a primeira gaveta à sua esquerda. Ali acumulam-se papéis em profusão: compromissos vencidos, cartas de cobrança, notas de moratórias e multas cumulativas; cópias de títulos de penhores, hipotecas e comodatos; notificações extrajudiciais desprezadas, intimações judiciais, medidas cautelares, habeas corpus, apelações, recursos recusados. Fecha-a, com um esgar de recusa e um suspiro angustiado.
Na segunda gaveta encontra um vidrinho de comprimidos quase vazio, alguns níqueis em moedas estrangeiras, álbuns com as fotos das últimas viagens à Europa, à África e à Ásia. Num envelope, o recibo do seu passaporte retido pelas autoridades e alguns documentos em inglês, uma apólice de seguro expirada. Fecha-a também. Abre a terceira gaveta e, já sabendo o que vai encontrar, enfia-lhe a mão até a metade do antebraço, quando se depara com um objeto duro, frio, pesado. Precisa empregar certa força para arrastá-lo para fora. É grande, letal e está carregado. Mas ele o manipula com habilidade, com a destreza de quem sabe do que se trata, como quem domina as técnicas e dinâmicas necessárias ao manuseio e uso eficiente daquele instrumento.
Com a arma em punho, ele retorna à janela. Reposiciona a luneta, e com o seu auxílio faz a mira. Demoora-se. Ele é meticuloso. Eu continuo sentado aqui, quieto no meu lugar. Só olhando, sondando, anotando. Ele agora abre a janela, a fim de liberar o caminho para os disparos. Com isso, porém, o bafejo morno e oleoso da tarde e os barulhos e rumores da rua invadem a sala. Ele se desconcentra por um instante. Afasta-se alguns passos. Segurando a pistola com o indicador na guarda do gatilho, ele caminha um pouco lá por dentro da sua sala privativa, cujas cortinas dialogam com a estampa do tapete. Por fim, retorna à sua mesa e apanha na gaveta ainda aberta um acessório complementar, um pequeno dispositivo metálico que ele rosqueia na ponta do cano. Feito isso, dirige-se outra vez à posição de tiro junto à janela.
Ele faz mira novamente. Miraaa… e desfere: Baanf! Sente no pulso um tranco seco, curto. Nesse exato instante, um pombo é alvejado a poucos centímetros do meu pé direito, espalhando penas para todo lado. Banff!! Báanff!! Gritos, correria. Pânico na praça. Báanff!! Ninguém ouve os disparos, mas um homem geme e se contorce na calçada logo à minha frente, as mãos e o abdome encharcados de vermelho. Um outro, um velho, bem do ladinho daquele, dobra-se sobre os joelhos, atingido no pescoço, seus olhos voltados para mim. Eu não me movo. Permaneço aqui sentado, quieto, escrevendo.
Ele se irrita com as falhas de sua pontaria. Impacienta-se. Esbraveja e esmurra o ar. Faz um semigiro meio obtuso, derrubando a luneta sem querer, enroscando-se no tripé que a suportava. Rilha os dentes, tanta raiva, tanta ira. O barulho que sobe da rua e entra pela janela o incomoda: gritos, sirenes de polícia e ambulância, burburinho, grande alvoroço. Agora ele está bravo de verdade. Contrariado ao extremo. Considera, então, primeiramente a janela entreaberta: décimo quarto andar! Depois cogita sobre aquela arma em sua mão. Ainda dispõe de alguns projéteis; e ele só precisaria de um.
O conto “Naquele prédio” - aqui com redação revisada e atualizada - foi publicado originalmente no livro Automáquina (Ed. Imprensa Livre, 2000).