“Ui!” – pensou Brelvez Velásquez y Nuñez meio segundo após constatar que piscou primeiro, pois distraíra-se ao ouvir a sua própria gargalhada na plateia, enquanto sentia crescer o vapor azedo e furioso que Durango, el Cruel expulsava pelas ventas, a poucos passos do contato.
Enxames de vespulgas e borbolotas atravessavam o palco, fugindo das pirilâmpadas incandescentes. Brelvez Velásquez y Nuñez cogitou escapar com os enxames, mas desistiu. Sua velha mãe não suportaria mais esse vexame indecente.
Durango, el Cruel preparou o ataque. Dirigiu sua cadeira de rodas até o centro do palco e gritou para um atordoado Brelvez Velásquez y Nuñez:
– Posso non concordar con las mierdas que tu dizes, mas defenderé até la muerte tu derecho de permanecer callado, en silencio, quietinho quietinho…
Brelvez concordava, ao menos em tese, com essa afirmação. Afinal, piscou primeiro. Mesmo assim divergia em alguns aspectos, pois o jogo, restando ainda duas rodadas pela frente, na melhor de três, estava longe da sua conclusão. E quando se preparava para expressar as suas ponderações, antes do avanço para a próxima etapa, escutou a gargalhada da sua velha mãe, no outro lado da plateia – tão forte que fez revoarem aeroloucas hiperaves sobre o palco. E pareceu-lhe ouvi-la acrescentar ainda um “Tst-tst-tst!” em desestímulo às suas intenções, quaisquer que fossem.
Isso o levou a recordar-se que desde pequeno sonhava ser alguém nessa vida. Acabou por se tornar atleta profissional. Depois de fracassar – para desgosto e constrangimento de sua velha mãe – em inúmeras modalidades individuais e por equipes, como o bilboquê, a bolica, o cuspe à distância e a amarelinha, por exemplo, Brelvez Velásquez y Nuñez finalmente converteu-se num dos maiores especialistas no jogo do sério. E agora ali se via na disputa pela medalha da final masculina dos Jogos Aleatórios Mundiais – já amargando uma considerável desvantagem inicial diante do seu impiedoso oponente, Durango, el Cruel.
“Ui, ui!” – pensou Brelvez Velásquez y Nuñez meio segundo após constatar que piscara mais uma vez. Desgraça! Distraíra-se novamente, agora com o ondular modorrento das próprias divagações. Dois a zero para o adversário, que grasnou e gargalhou pelas ventas e pelos ouvidos, a poucos passos do paraíso da vitória:
– Muy en brieve usted serás conocido como el pisca-pisca más rápido del leste y del oeste.
“Tst-tst-tst!” – menoscabou em sustenido a velha mãe, quase estrebuchando, relembrando em devaneio profundo seus feitos de juventude: primeira mulher a pisar em Marte, primeira mulher a descer até a Fossa das Marianas, primeiro ser humano a dialogar telepaticamente com os chimpanzés e primeiro ser humano a vencer o AlphaGames de lavada no xadrez, no gamão, nas damas, no go e em outros jogos de tabuleiro.
E Brelvez faria de tudo, claro, para não renegar essa enorme carga de energia genética, impregnada de tamanho furor combativo e tão insana predisposição para encarar desafios, que herdara de sua mãe. Embora já tivesse levado a pior naquela melhor de três, ele demonstrava que não pretendia se entregar assim tão fácil. Durango, el Cruel teria que engolir aquela gargalhada de volta, pois ele resistiria até aproximadamente o último suspiro.
Durante a adolescência ele aspirara a graduar-se toureiro, como o seu avô, seu pai e seus tios – todos de saudosa memória. E não perdia um episódio sequer das séries de touradas na tevê. Sua não tão velha mãe o estimulava, então, afagando-lhe o ombro com uma das mãos – enquanto treinava, com a outra, para tornar-se a primeira pessoa humana a dar um nó num pingo d’água (e esconder as pontas) usando apenas o indicador e o polegar. Daí a sua inclinação natural para as disputas atléticas, corporais e psíquicas, fator que logo o impeliu para o mundo das competições. Brelvez Velásquez y Nuñez apreciava ser desafiado, mas considerava cada adversário um touro a ser derrubado. Por isso, talvez, costumava acrescentar-lhes cognomes e epítetos taurísticos.
– Alá, piscou travez! Quaquaquá! – explodiu Durango, el Cruel numa ridícula gargalhada de Jack Oswald White, codinome Coringa, o Verdadeiro. Em seguida começou a fazer giros com a cadeira de rodas, celebrando e bufando sua estrondosa vitória. – TRÊS A ZEROOO, POURRAAA!
A vergonha mais vergonhosa inundou as envergonhadas veias e artérias de Brelvez Velásquez y Nuñez, quase parando o bumbum paticumbum prugurundum do combalido miocárdio de nosso esfandegado herói. O tempora! O mores! Dessa vez o touro Ferdinando cruelmente torturado e derrubado era ele, Brelvez Velásquez y Nuñez, ele mesmo – ah, humilhação! –, e bem na frente de sua velha mãe, que se levantou em silêncio e em silêncio foi se arrastando para a saída do auditório.
No saguão do teatro, mais precisamente no bar mal iluminado, ela encontrou a velha mãe de Durango, el Cruel contemplando um adorável copo de uísque escocês, sentada entre outras velhas mães de dezenas de competidores, todas contemplando, embevecidas, seu brilhante quinhão de paraíso líquido destilado em barris de carvalho, nenhuma interessada no respectivo filho ou na tabela do campeonato. Observando melhor, a velha mãe de nosso herói Brelvez Velásquez y Nuñez notou que todas as velhas mães presentes bebiam e conversavam, mas não piscavam – os olhos bem abertos. O costumeiro garçom, um discreto baixinho, até comentou mais baixinho ainda:
– Estão assim há quase duas horas. Competindo.
Após servir também a sua dose – sempre sem piscar, dizem que estava assim desde as oitavas de final –, o rapaz apenas deu-lhe as costas, afastando-se para atender outras clientes ao longo do balcão, que lhe batia quase à altura dos ombros.
A velha mãe de Brelvez, copo à mão, explorava agora o salão onde dezenas de respeitáveis senhoras parlamentavam animadas, mirando-se mutuamente com os olhos esbugalhados, enquanto bicavam com gosto o seu uísque. E constatou que todas continuaram sem piscar até mesmo quando a transmissão na tevê do bar foi interrompida de última hora para anunciar uma reviravolta no resultado da final masculina. O baixinho aumentou o volume. O competidor Rubén Ruíz y Durango acabava de ser desclassificado por não haver declarado em sua anamnese obrigatória, como regula o regulamento, uma discreta – porém inconteste – patologia secundária que poderia implicar em eventual quadro de paralisia do nervo óptico (ainda que sob determinadas circunstâncias), conforme revelara o laudo da comissão técnica do certame nos exames de praxe pós-competição. Por consequência, Brelvez Velásquez y Nuñez seria declarado vencedor.
Partindo lá do palco, vencendo as portas corta-fogo do auditório e algumas colunas do saguão, uma derradeira gargalhada de Brelvez – tão aguda e rascante que fez resvoaçarem ao seu redor enxames de grafalúmeos e hidromélulas – veio alcançar a sua velha mãe ali no bar. Ela apenas voltou-se para aquela direção, ergueu o copo em reverência e, de olhos sempre bem abertos, virou tudo num trago só. Seu impulso vingativo de finalmente revelar ao rapaz que ele não era seu filho biológico, mas uma criança feia deixada no cesto de roupa suja, dissolveu-se no indolente orgasmo da vitória.
O miniconto Jogo do sério foi escrito em colaboração com Luiz Bras [autor de Subsolo infinito, Distrito federal, Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros], em regime de dueto-duelo, nos moldes dos repentistas da cultura nordestina brasileira. De improviso e sem qualquer combinação prévia de tema, trama ou forma, partindo de um insight provocador, fomos alternando parágrafos e cenas na construção da insólita jornada do nosso destrambelhado herói Brelvez Velásquez y Nuñez, seu impiedoso oponente Durango, el Cruel e de suas nada convencionais velhas mães.
Um brinde à arte literária, um viva à literatura-arte!
Floripa, fev’25
As ilustrações foram feitas por mim, com auxílio do app Magic Media (AI) do Canva.
Bom demais esse dueto-duelo!
As imagens ficaram ótimas. Principalmente a das velhinhas.