No dia em que Gabriel García Márquez transcendeu, há exatos dez anos (em 17/04/2014), transferindo o seu domicílio para o distrito dos Imortais, na comarca da História, todos soubemos que a humanidade perdia uma portentosa usina capaz de engendrar beleza, encanto, alegria, espanto, surpresa, êxtase poético. Ficamos mais tristes e mais pobres, desde então. Mas não menos ricos e felizes, paradoxalmente, pelo privilégio que nos concedeu de conhecer e desfrutar da mais refinada arte literária, pelas incontáveis páginas perfeitas, pétalas de ouro, que semeou vida afora. E já nos acostumávamos a assumir como estabelecido o catálogo completo da sua formidável produção autoral, quando nos deparamos com o anúncio de um novo romance, inédito, em edição póstuma. De pronto, uma comoção inevitável toma conta do mercado editorial e alvoroça milhares de corações ansiosos pela novidade.
Lançado no Brasil há pouco mais de 40 dias, em 6 de março – data em que Gabo completaria o seu 97º aniversário –, o romance Em agosto nos vemos (Ed. Record, 2024) chegou precedido por um avolumado torvelinho de controvérsias e imerso em acaloradas discussões sobre os mais variados aspectos envolvendo o livro e seu entorno. Desde o questionamento à legitimidade – e oportunidade – da sua publicação, uma vez que o texto teria sido renegado pelo próprio García Márquez, até o sopesar dos seus méritos (e eventuais deméritos) literários em balanças dotadas dos mais distintos contrapesos e critérios de aferição. Essa floresta espessa e profusa de armadilhas e alçapões, porém, é senda perigosa, por onde não me atrevo a enveredar. O meu propósito aqui, portanto, é apenas compartilhar algumas impressões e sensibilidades de leitor entusiasta do autor e de sua obra, passando à margem das arenas em que esses embates secundários acontecem.
Como todo mundo sabe, o sistema econômico vigente transforma em produto tudo aquilo que possa ser reproduzido, consumido, comprado, vendido. E um livro “novo”, inédito, com o nome do vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1992 estampado na capa, um dos escritores mais conhecidos, reverenciados e amados em todo o planeta, se torna obviamente um produto dotado de um apelo irresistível – particularmente para determinados públicos de interesse. Eu, claro, como tantos dos seus leitores apaixonados, não hesitei. Assim que saiu, corri na livraria e garanti o meu exemplar.
Embalado num caprichado projeto gráfico da Editora Record e com a cuidadosa tradução de Eric Nepomuceno, o romance nos convida a acompanhar os passos e impasses de uma mulher de meia-idade, Ana Magdalena Bach, que precisa viajar todo ano para uma determinada ilha, no mês de agosto (por supuesto), a fim de depositar flores no túmulo de sua mãe. Para isso, ela precisa fazer uma longa travessia marítima e ficar hospedada num hotel da ilha. Ali, uma vez quebrada, incidentalmente, a rotina e o ritual que ela própria estabelecera para essas viagens, numa ocasião em que se permitiu ir para a cama com um estranho, passou a repetir esse comportamento nos anos seguintes, mas variando de parceiro toda vez. As suas aventuras nesses passeios anuais, em que podia dar vazão aos seus impulsos e desejos mais profundos, e os seus esforços para processar o peso dessas pequenas fugas sobre a vida cotidiana e as suas relações com o marido e os filhos, constituem o desafio – objetivo e subjetivo – a ser encarado e superado por Ana.
Estruturado numa narrativa enxuta – 6 capítulos dispostos em 100 páginas – com um eixo dramático bem definido: as peripécias amorosas em meio aos dilemas de autodescoberta da protagonista, o enredo se desenvolve com razoável leveza e agilidade. Mesmo assim, é possível intuir o vigoroso empenho do mestre Gabo – já enfrentando os primeiros sintomas do déficit cognitivo que o avançar da idade também lhe trouxera – a fim de seguir manejando as sílabas com aquela destreza lapidada no curso das décadas, tentando pastorear as palavras pelas trilhas que melhor lhe convêm, trabalho que sempre lhe fora natural e rotineiro, buscando arrastar os nossos olhos pelas veredas da narrativa. Também é possível constatar que temos aqui um texto com boas doses daquela sensualidade à flor da pele, tão frequente e peculiar na obra do autor colombiano, mas que me pareceu, em idêntica proporção, descompromissado com maiores ambições de complexidade ou profundidade e mesmo desapegado de pretensões estéticas mais arrojadas ou de fabulações hiperbólicas e surpreendentes. Reservando o insólito, o bafejo do fantástico, apenas para o desfecho da trama, mas buscando sempre uma dimensão poética e filosófica para os pequenos eventos e acontecimentos cotidianos, cuja digestão é facilitada por um vocabulário simples e acessível. Com isso, o texto escorrega macio e sem sobressaltos, levando-nos de arrasto com ele. Uma leitura instigante, sem dúvida, pelo menos o suficiente para despertar e ativar em mim uma vontade imediata de reler Cem anos de solidão. E foi o que fiz.
Apanhei na biblioteca o meu precioso exemplar de 1985, também publicado pela Editora Record (com tradução de Eliane Zagury e enriquecido pelas icônicas ilustrações de Carybé), presente da minha amada, com o seu corpo acusando o transcurso do tempo – como o de José Arcádio, acorrentado à castanheira do quintal de sua casa em Macondo – e o trouxe para a minha mesa de trabalho. Mesmo sem necessitar abri-lo, pois me habituei à leitura na tela do smartphone, a sua companhia é portadora de uma carga de imagens, memórias e sensações muito vívidas, remontando ao meu primeiro contato, à primeira leitura dessa obra monumental. E o que me acontece é, sempre e toda vez, a emergência daquele cataclismo interior de alta voltagem, uma experiência vital da qual ninguém jamais consegue regressar totalmente ileso. Um choque poético que põe a vibrar as membranas mais delicadas da nossa sensibilidade, um impacto potente que faz vacilarem os fêmures de qualquer bípede alfabetizado. Um livro que me mostrou, então, de uma maneira brutal, acachapante, como é que se faz arte literária de verdade. Arte de gente grande, energizada por potências dionisíacas mas vertida numa linguagem apolínea, de uma beleza hipnótica, usando para isso apenas as capacidades alquímicas do autor para combinar e encadear palavras de um modo único, singular. Fulminado por essa constatação, não consigo mais do que externar – outra vez e sempre – o meu entusiasmo com um suspiro de admiração e um discreto sorriso de cumplicidade, talvez mimetizando a reação que o próprio García Márquez assumia ter tido ao ler A metamorfose, de Kafka.
No entanto, sobre esse clássico, pedra angular do realismo mágico, já se disse praticamente tudo o que se poderia dizer, nada mais havendo que se possa acrescentar. Uma obra que, paradoxalmente, seguirá suscitando leituras entusiásticas e interpretações as mais diversas nas novas gerações de leitores.
Cem anos de solidão é, seguramente, uma das obras mais conhecidas, lidas, relidas, estudadas da literatura mundial. Todos nós já brincamos de tentar imitá-lo, alguma vez. Todavia, como obra de um gênio superior – tal como Dom Quixote, O processo, Guerra e paz, Ulisses, Grande sertão, veredas e os outros equivalentes seus no panteão da literatura universal –, é uma peça única, singular, irrepetível, como os grandes empreendimentos literários que dignificam e valorizam o melhor do engenho criativo humano – instância que qualquer inteligência (biológica ou artificial) precisaria evoluir alguns milhares de anos para alcançar.
De todo modo, é sempre um conforto saber que Gabriel García Márquez permanecerá conosco por muitos séculos ainda, como nosso conviva, nosso anfitrião, nosso assunto, fonte inesgotável de inspiração e objeto perene da nossa mais agradecida admiração.
Floripa, 17/04/2024