Muito embora eu tenha optado por dedicar este espaço – e o esforço necessário à sua existência – para compartilhar as minhas leituras e releituras prioritariamente da prosa situada no horizonte da literatura fantástica (e seus subgêneros), ocorre que, em determinados momentos, sinto-me no dever de fazer registros relevantes – como tenho feito – no âmbito da literatura em geral, para além das fronteiras de gênero ou estilo. Neste caso, em que dedico algumas palavras a fim de celebrar o cinquentenário de trajetória literária de um dos mais importantes escritores catarinenses, Enéas Athanázio, tenho ainda uma motivação afetiva adicional: o fato de sermos conterrâneos, tendo ambos nascido com apenas algumas décadas de distância, na mesma cidade de Campos Novos (SC).
Autor de uma obra prolífica e variada, com quatro dezenas de livros publicados nos mais diferentes gêneros – conto, novela, ensaio, artigo, biografia, crônica, crítica, autoficção, entrevista, além de importantes estudos jurídicos –, atribui-se a Enéas Athanázio a renovação da narrativa de temática regional catarinense, imprimindo uma dicção própria à expressão da cultura e do estilo de vida da população do meio-oeste do estado, com obras que só enriquecem o gênero e que o posicionam como um dos mais importantes escritores da sua geração. Por isso, nesta edição do Lunário do Farol trago as minhas anotações da recente releitura do seu primeiro livro de contos, O peão negro, lançado em 1973, com o propósito principal de render-lhe a minha reverente homenagem.
Quando o mestre maior de todos os magos, João Guimarães Rosa, sentenciava que “o sertão é do tamanho do mundo”, aludia, por certo, ao seu próprio sertão, o seu horizonte geoficcional, mas se referia também ao “sertão universal”, por onde transita toda a humana experiência. Os grandes autores, mesmo ao abordarem a vida singela da gente simples e humilde da sua terra, quando logram tanger as questões essenciais, os dilemas e inquietações inerentes à condição humana, universalizam o “seu” sertão, transcendendo as fronteiras da sua realidade objetiva para adentrarem os salões da verdadeira arte literária. Assim é que, a meu ver, sob esse signo, o escritor camponovense Enéas Athanázio há cinco décadas imprimia os seus primeiros passos na literatura e iniciava a edificação de uma obra abrangente e admirável, já prenunciando uma trajetória destinada ao sucesso e ao reconhecimento.
“O peão negro”, livro que demarca a estreia desse que é um dos maiores prosadores nascidos em terras catarinenses, lançado em 1973 — permitindo-nos celebrar, portanto, o seu cinquentenário —, foi acolhido com enorme entusiasmo e generosos elogios pela comunidade cultural e pelos mais capacitados especialistas de então. Tal deferência já se explicita pela acuidade e profundidade da análise empreendida no Prefácio pelo consagrado escritor e crítico Péricles Prade. Trata-se, pois, de um livro singular, em que a habilidade narrativa e o cuidadoso manejo de uma dicção regional orgânica e naturalizada se complementam com o uso de uma linguagem culta e polida, mesmo quando condimentada com alguma ironia ou mordacidade, revelando desde logo um autor de inegável talento criativo e já no pleno domínio dos melhores recursos do seu ofício.
No contexto das dez narrativas breves que compõem a coletânea, não são raras as ocasiões em que o narrador se revela — para além de relator do “causo” em si — também um observador arguto, um analista atento e alerta, deixando entrever a extensão da sua visada e a profundidade da sua reflexão. Com sutileza e discrição, por exemplo, é capaz de imiscuir referências eruditas nas entrelinhas de uma frase aparentemente despretensiosa, como aquela menção inequívoca (porém velada, inexpressa) ao filósofo Immanuel Kant em “O bilhete lotérico”, estabelecendo um diálogo direto e ativo — embora subliminar, aquém das palavras — com o intelecto do leitor mais perspicaz.
“Januário Finimundi era um homem apegado à terra. Jamais lhe passara pela cabeça a ideia de mudar, mesmo para cidade maior, com mais conforto e distrações. A família, os amigos, o cafezinho no bar da esquina eram hábitos que nem de longe sonhava despegar-se. Progredia lentamente, mas com firmeza, no seu negócio de secos e molhados, e a mais que isso não ia sua aspiração de homem desambicioso.
Metódico e pontual, ignorando embora a existência de certo filósofo alemão, poderiam seus vizinhos, como os daquele, acertar os relógios pelos seu atos. Todas as manhãs sentava-se à área fronteira tendo nas mãos uma guia de chimarrão e ali, na velha cadeira de braços, já roída pelos anos, punha-se a observar a cidadezinha que despertava de mais uma noite enquanto sugava o bocal dourado e ingeria um líquido esverdeado que lhe esquentava o peito.”
[O bilhete lotérico, in O peão negro, Enéas Athanázio, Ed. do Escritor, 1973, pg. 75]
O conto que abre o livro, “São Simão”, além de estabelecer os contornos historiográficos e sinalizar a ambientação espaço-temporal dos relatos que se seguirão, constitui uma espécie de diagrama genealógico e sociocultural do seu universo ficcional. Ao tratar de explicar a procedência e a razão da escolha desse nome para o pequeno lugarejo no sertão do meio-oeste catarinense em que quase todos os relatos do livro transcorrem, num episódio rico em camadas de significação, com boas doses de tensão e suspense — quais teriam sido os “argumentos” usados pelo Major Lica para convencer o padre Quevedo de que, a despeito dos fatos, São Pedro jamais poderia ocupar o lugar de São Simão? —, a narrativa faz uma síntese arquetípica dos extratos sociais e perfis humanos que predominam naquele microcosmo. Conto esse que, além da sua própria dimensão literária, como peça autônoma e autossuficiente, cumpre também um papel estruturante do conjunto, servindo-lhe de esteio contextual, recurso que faculta ao leitor uma melhor percepção da unidade da obra.
É necessário sublinhar, contudo, que o autor faz alusão a um lugar efetivamente existente, georreferenciável, pois São Simão é o nome de uma localidade pertencente ao distrito de Encruzilhada, no interior do município de Campos Novos (SC). Seguindo o viés desse raciocínio, poderíamos talvez pensar que a São Simão ficcional de Athanázio parece resultar de uma amálgama da sua (— nossa) Campos Novos, vivida por experiência própria, com uma realidade imaginária, um mundo fictício arquitetado pelo autor para nele plasmar a sua obra. Os relatos aí ambientados, em consequência, parecem emergir da fermentação daquele caldo nutritivo formado por histórias, estórias, lendas, anedotas, fábulas, tiradas, crônicas (reais, inventadas ou fantasiadas) presentes principalmente na tradição oral da região, colhidas em sua infância e no convívio continuado com os seus conterrâneos, mas transfundidas em verve narrativa mediante processos e procedimentos criativos para fins literários.
Os seus protagonistas e personagens mais marcantes são pessoas simples, de escasso conhecimento do mundo, com poucas letras, mas com um atilado senso de sobrevivência, enfeixadas nos contornos de uma fé de preceitos rígidos, submetidas aos rigores de uma vida dura, bruta, com pouco conforto e sem perspectiva de saída, tendo por deleite e passatempo principais as disputas políticas, a pescaria, a caçada, as festas comunitárias e as carreiradas (corridas a cavalo). Existências com o horizonte já delimitado a partir do berço em que se nascia — numa sociedade arcaica, patriarcal, em plena vigência do coronelismo. Experiências de vida, entretanto, por mais prosaicas e privadas de peripécias espetaculosas que fossem, tornavam-se, por força da energia literária nelas infundida, também portadoras de profundas e relevantes especulações acerca de questões humanas e universais. Tópicos como a ganância e a ambição pelo poder, a opressão e a violência política, a presença ostensiva da religião na jornada cotidiana e no direcionamento do convívio comunitário, a ética inflexível da palavra empenhada, entre outros, são abundantes e frequentes em seus relatos. Assim, pois, de modo que o retrato do “sertão local” se manifesta e ganha forma nutrido pela substância de um “sertão universal”, acessado e tangido pela expressão literária.
Se for possível, então, encontrar uma unidade cênica, contextual — o microcosmo de São Simão —, pode-se admitir que ocorre também, nessa obra, uma certa unidade temática, posto que a absoluta maioria das narrativas têm como panorama (ora mais, ora menos centralizadas no enredo) situações ou personagens relacionadas às intermináveis pendengas políticas e disputas eleitorais. Até mesmo o conto que dá título ao volume, “O peão negro” — que relata a jornada de aventuras e desventuras de um mulato nascido e criado numa das fazendas no interior de São Simão —, transcorre numa conjuntura em que o jogo do poder político regional certamente transita pelas mãos (e pela algibeira) do coronel-fazendeiro. Esse é o enfoque temático — ou com ele contribui — em sete dos dez contos que integram o volume: “São Simão”, “Eleição na roça”, “Pito aceso”, “O peão negro”, “O documento”, “O comício” e “Homicídio qualificado”.
A propósito deste último, “Homicídio qualificado”, que encerra o volume, cabe ainda um registro suplementar, pois — se eu não estiver muito enganado — é possível flagrar nele um flerte, tímido mas nítido, com a literatura fantástica. Num enredo com traços de thriller psicológico e com elevada carga dramática, Athanázio consegue inserir um elemento insólito — um cadáver (real ou imaginário?) à porta do quarto do protagonista — levando a um desfecho de elegante resolução. Conquanto a busca pelo fantástico não correspondesse, claro, à proposta conceitual do livro, a qualidade estética dessa bela narrativa — no mais, de todo ajustada ao conjunto da obra — só vem referendar a dimensão e a envergadura da sua competência autoral.
De toda sorte, considerando a obra em sua totalidade, resulta fácil constatar que, mais do que uma antologia ou um apanhado de narrativas soltas, “O peão negro” constitui um conjunto coeso de peças literárias independentes, mas muito bem articuladas, costurando e estruturando um discurso uno e consistente. Os contos são interligados tanto pelo cenário (com descrições enxutas e isentas de paisagismo descritivo) e pelo contexto histórico em que as histórias transcorrem quanto pela temática predominante que orbitam (as disputas políticas e refregas eleitorais nos tempos do coronelismo). Ou seja, mesmo numa abordagem atualizada, passadas cinco décadas desde a sua primeira publicação, essas primeiras narrativas — assim como toda a obra posterior de Enéas Athanázio — continuam literariamente válidas, dignas de leitura, releitura, divulgação, estudo, respeito e grande admiração.
Obrigado, sempre, pelo seu tempo e pela sua leitura!
Um abraço,
Cláudio Dutra
Floripa, 29/10/2023