É só quando a campainha ressoa pela nona ou décima vez que eu me movo em direção à porta. Bastante a contragosto, devo admitir. Vou saindo de ré, com o meu olhar ainda agarrado à vidraça emoldurada da janela, espichando a vista lá para fora. Não quero perder nada do que está acontecendo ali na praça. Mas se eu não for atender, é bem capaz que me arrebentem a porta, ou que explodam os meus tímpanos com esse trinado irritante.
– Caalma, calmaa! Quem éé?? – procuro saber, mas já dando a segunda volta na chave.
Nesse instante, a maçaneta dá um pinote na minha mão e a porta se entreabre num tranco, até ser contida pela corrente do fecho, ali em cima. Enquanto tento me refazer do susto, vejo quatro dedos enluvados entrando pela fresta e subindo até desenroscar, com desabusada facilidade, a trava do pino de segurança.
Eu me afasto um pouquinho para trás, bem a tempo de não ser atropelado pelo corpanzil que entra num rompante – como um panzer a caminho do combate. Volumosa, maciça, mas com movimentos ágeis e desinibidos, ela vai limpando os sapatos no tapete de boas-vindas, olhando para mim como se eu não fosse mais do que um móvel da sala ou um tronco de xaxim num vaso de barro.
– Hmmff... Pois é, se o senhor me desse uma cópia da chave, não precisava vir abrir pra mim cada vez, não é mesmo?! – A grandalhona aperta os lábios, fazendo muxoxos de censura, mas num tom amistoso e descontraído, sentindo-se muito à vontade, enquanto retira as luvas e esfrega as mãos, para espantar o frio.
– E quem é que a senhora pensa que é para ir entrando desse jeito na residência alheia? – Mesmo um pouco inseguro acerca do que está acontecendo, eu não deixo de protestar a minha indignação.
– Aaah... Pois, então, bom dia, seu Miro! Desculpe eu ir entrando assim, tão estabanada – diz ela, já tirando e dependurando o gorro, o cachecol e a japona (com as luvas nos bolsos), cobertos por flocos e crostas de neve, no cabideiro atrás da porta. – É que a friaca está de moer, aí fora! E hoje eu me atrasei ainda mais por causa do fervo infernal daquela gurizada, ali na praça. O senhor viu, né?
Sem sequer esperar alguma reação ou resposta minha, ela dá um tapinha no ar, como que deixando isso tudo para lá. Depois faz um semigiro sobre si mesma, num rodopio repentino sobre os calcanhares, dando-me as costas, apontando para a área de serviço e seguindo reto naquela direção. Eu nem me mexo do lugar.
Fico me perguntando se eu não deveria talvez conhecê-la, saber o seu nome, pelo menos, (como é que ela sabe o meu?), e por que é que ela está aqui, no meu apartamento. Ou se eu não poderia, por outro lado, apenas expulsá-la de volta para a rua e retornar sossegado ao meu posto de observação, na janela do escritório.
Mas nem tenho tempo de elaborar melhor essas conjecturas, ou mesmo de me reaprumar na cadeira, pois ela já retorna lá de dentro. De avental, com um lenço prendendo e protegendo os cabelos, as mangas da blusa arregaçadas, ela traz um balde plástico com um kit de produtos e instrumentos de limpeza. Passa direto por mim, atravessa o corredor e segue certeira lá para o meu quarto. (Começo a desconfiar que não é a primeira vez que ela vem aqui. Ou que faz isso.)
Resistindo a muito custo aos apelos da curiosidade e aos convites da janela do escritório, resolvo ir até a entrada do meu quarto, pra ver afinal o que é que ela pretende fazer ali. Chego junto à porta, mas permaneço do lado de fora. Assim observo que ela já retirou toda a roupa de cama, recolhendo-a num grande cesto de plástico, junto com alguns pijamas, ceroulas, camisetas, calças, camisas e outras peças minhas usadas, dispersas pelo ambiente.
Agora percebo que ela me avista aqui, mas não se detém. Vai passando primeiro a vassoura, em seguida um pano umedecido em líquido desinfetante (um aroma de pinho concentrado entra rasgando pelos dutos do meu olfato), envolto num rodo, por todo o assoalho do quarto, inclusive sob a cama. Sempre em silêncio, limpa os móveis e os poucos objetos decorativos. Depois, aparentando saber precisamente onde procurar, ela abre a terceira gaveta da cômoda e retira dali um jogo de cama, e mais uma toalhinha nova para substituir a da mesa de cabeceira.
Na falta de certeza sobre o que perguntar, eu começo sondando:
– Quer dizer que a senhora viu, então, o que as crianças estavam fazendo ali na praça?
– Não só vi, como tomei parte ativa, seu Miro. O senhor não estava acompanhando tudo daqui, pela janela do escritório? – Ela faz um cabeceio na direção referida, mas sem se voltar para lá, nem para mim, enquanto enfia o segundo travesseiro para dentro da fronha, lançando-o em seguida ao seu lugar com um trejeito habilidoso. A cama, ao cabo de três ou quatro movimentos bem articulados, estava revestida com lençol, sobrelençol, edredom e colcha limpos.
Quando, afinal, ela termina essas operações, apanhando o cesto com uma mão e o balde com a outra, vira-se para cá e logo começa a caminhar na minha direção. Meio que por instinto, eu faço as rodas girarem para trás recuando alguns centímetros, mas fico retido pela parede do corredor. Ela vem, para na minha frente, descansa o balde e o cesto no chão, retira uma cenoura do bolso do avental e a apresenta para mim.
Eu examino a cenoura com estudada circunspecção – pois necessito aportar algum grau de racionalidade e uma boa fundamentação epistemológica ao meu posicionamento – e devolvo um olhar concordante para ela, seguido de um tímido aceno de cabeça (pois ainda não consigo discernir com o quê, exatamente, estou concordando).
Considerando-se satisfeita com a minha reação, ela se inclina um pouco mais e, toda cerimoniosa, me oferece a cenoura. Eu agradeço, com uma recusa diplomática. Sem insistir, ela se recompõe e, após dar uma generosa mordida, guarda o pedaço que restou no seu bolso frontal outra vez. Faz uma rotação sobre sua própria cintura, virando-se a fim de conferir o serviço realizado. Dando então aquela etapa por concluída, ela se abaixa e retoma o balde e o cesto.
– O senhor me dá licença, faz favor, que eu preciso ir colocar isso tudo lá na máquina.
Eu me afasto do seu trajeto, entrando de costas no banheiro. Ela aproveita e me pede para lhe alcançar as toalhas usadas e o que mais dali precise ser trocado. Alcanço. Ela coloca no cesto e segue seu caminho. Eu retorno ao corredor.
Enquanto ouço os trâmites dela ligando, programando e enchendo a lavadora, lá na área de serviço, eu vou deslizando com a cadeira em direção ao escritório. Entro e vou direto à janela.
Ainda estão lá, as crianças. São umas dez ou doze. Brincam com a neve acumulada em grande quantidade nos arbustos e sobre o gramado da praça. Fazem um boneco. Grande, do tamanho de um adulto. Agora uma das meninas vai e enfia uma enorme cenoura na cara da bola branca que lhe serve de cabeça, a título de nariz. Todos caem na gargalhada. Porém, não demora muito até que um dos meninos, sob o entusiástico incentivo dos demais, retira a cenoura de onde estava, instalando-a na região genital do boneco. Então, numa crescente algazarra, todos começam a correr ao seu redor, gritando e pulando.
Mas isso só vai indo assim até que a mão direita do boneco começa a se movimentar, ativando o braço todo, quebrando a crosta de neve e indo retirar a cenoura dali – surpreendendo e exasperando ainda mais a garotada. Em seguida, o outro braço se desprende da casca branca e gelada e começa a se mexer também. Por fim, com um arrepio trepidante, que se inicia pelos ombros e desce até os calcanhares, o boneco se desmonta e se desmancha por inteiro, desintegrando-se em centenas de pedaços e deixando sair de dentro uma pessoa. Enorme. Uma mulher. Uma mulher enorme.
As crianças atiram-lhe pelotas de neve. Ela começa a correr, com a cenoura na mão. Atravessa a praça, seguindo diretamente... para cá. Escuto a porta do prédio, lá no térreo, sendo aberta e depois fechada. Passos apressados ecoando no saguão de entrada. O motor do elevador sendo acionado.
Olho pela janela e observo que, ao perderem o seu rastro, assim que ela atravessa a porta lá embaixo (ocultando-se também ao meu olhar), as crianças desistem e voltam para a praça. Não demora nada e elas começarão outro boneco, usando como preenchimento o primeiro transeunte que lhes cair nas mãos.
É claro que eu gostaria muito de continuar acompanhando aquela movimentação toda, só para ver no que é que aquilo iria dar, mas a campainha lá da porta não para de trinar. Quem é que poderia ser, numa hora dessas?
O conto “A senhora em questão” foi publicado originalmente no livro Altomar (Ed. Oito e Meio, 2023].