Daqui a menos de um mês, em 15 de outubro, comemora-se o primeiro centenário de nascimento de um dos maiores escritores do século XX, Italo Calvino. Um acontecimento dessa magnitude por certo não deixará de ser adequadamente celebrado — como já vem acontecendo, com tantas atividades e iniciativas editoriais, exposições, eventos alusivos e publicações de conteúdo jornalístico, ensaístico e biográfico dedicados a Calvino e à sua obra. De minha parte, então, presto aqui a minha modesta homenagem a esse autor genial, que foi uma das referências fundamentais na minha formação e autodescoberta como leitor, ensinando-me a apreciar a Literatura como Arte, mostrando-me do que ela é feita.
Embora Italo Calvino tenha passagens por diversos gêneros, subgêneros e estilos literários (como o neorrealismo, o surrealismo e o movimento OuLiPo), é impossível dissociá-lo do realismo fantástico — ou realismo mágico, ainda que este termo esteja intimamente vinculado à literatura latino-americana (fonte da qual Calvino sorveu com desassustada avidez). Alcançou renome internacional principalmente a partir da publicação da trilogia Nossos Antepassados, composta pelos romances O Visconde partido ao meio, O Barão nas Árvores e O Cavaleiro Inexistente. Nesses três relatos mirabolantes, ambientados na Europa medieval, com os seus exóticos e impagáveis protagonistas apresentados por narradores absolutamente inconfiáveis (um irmão menor, um sobrinho bastardo, uma freira reclusa), Calvino entabula tramas fabulosas, cria personagens icônicos e desenvolve enredos memoráveis, ricos em ironia e reflexão, densos de ideias e de poesia. Obras que logo encantaram a crítica e cativaram um imenso público em todos os continentes.
Além desses, inúmeros outros livros de extraordinário sucesso contribuíram para consolidar o nome de Calvino numa posição de destaque na cena literária mundial. Obras como Palomar, Todas as cosmicômicas, O castelo dos destinos cruzados, Um general na biblioteca, Se um viajante numa noite de inverno, Os amores difíceis, estão entre as mais conhecidas e apreciadas. Em todos os casos, sobressai a sua prosa elegante, delicada, transparente, especulativa, instigante, enquanto trata de questões de interesse universal, como a guerra, a revolução, a emancipação intelectual, a literatura, a arte, a política, o poder. São textos que precisam ser revisitados de tempos em tempos, pois a cada releitura um novo livro se revela.
Todavia, há um ponto em comum em tudo o que tenho estudado e aprendido sobre Calvino e sua obra: que o romance As cidades invisíveis (de 1972) possivelmente seja aquele que melhor representa o momento de plena maturidade do seu estilo, o ápice da sua produção literária. Ele próprio, em uma das conferências que preparava para apresentar na Universidade de Harvard em 1985 (evento que não chegou a acontecer, pois faleceu em 19 de setembro daquele ano), publicadas postumamente sob o título de Seis Propostas para o Próximo Milênio, então destacava: “As cidades invisíveis é o livro onde penso ter dito mais coisas, talvez porque tenha conseguido concentrar em um único símbolo todas as minhas reflexões, experiências e conjecturas”.
Ainda que As cidades invisíveis não tenha sido o primeiro livro de Calvino que li (o primeiro foi O barão nas árvores), certamente foi um dos que mais profundas impressões me causou. Toda vez que o retomo para uma nova leitura parece como se fosse o meu primeiro encontro com as suas páginas. Dá pra dizer mesmo que, como os grandes clássicos, esse é um livro que se recusa a ser relido, pois a cada novo contato com o seu texto, uma nova experiência se realiza, sempre surpreendente, impactante, potente.
Escrito enquanto Calvino residia em Paris, o romance tem como premissa um hipotético diálogo entre o conhecido explorador e mercador veneziano Marco Polo e o imperador mongol Kublai Khan, situado no século XIII. Nessas longas e ilustrativas conversas, Polo descreve ao poderoso Khan (neto do próprio Gengis), satisfazendo a sua curiosidade insaciável, as cidades por onde teria andado, na condição de embaixador imperial. Tão vasto, pois, era o território sob seu comando, que o imperador ainda desconhecia grande parte dos seus domínios.
Tais cidades, entretanto, são criações da fecunda e infatigável verve poética de Polo, de modo que os cenários descritos não correspondem a lugares efetivos, concretos. Ou seja, inexistem, não se encontram em nenhuma coordenada localizável no espaço, situando-se apenas na mente do narrador — e do leitor, claro. Desse modo, dado que não se possa colher qualquer fundamentação racional ou sentido verossímil do texto, imerso numa fusão indiscernível entre realidade e imaginação, deduz-se que seja essa a razão de se considerar, essas cidades, invisíveis.
De tudo o que li e pesquisei sobre o processo de elaboração desse livro, me atraiu a atenção a circunstância de que, no seu período parisiense, Calvino se envolveu com o movimento OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle, ou Oficina de Literatura Potencial). Esse movimento, em síntese, constituía uma corrente literária comprometida com a integração entre a literatura e as ciências exatas, como a matemática e a lógica, por exemplo, por meio da imposição de regras rígidas e restrições formais de composição para os textos dos seus adeptos. Por esse motivo, dizem alguns especialistas, é que a estrutura de As cidades invisíveis corresponde a um intrincado esquema lógico, organizando as 55 cidades descritas em 9 capítulos, com 11 grupos temáticos (As cidades e o nome, As cidades e a memória, As cidades e os símbolos...), cada grupo contendo 5 cidades. O conjunto dos relatos corresponderia, assim, a um projeto arquitetônico muito bem planejado, permitindo um determinado número de combinações e articulações internas possíveis (e igualmente impossíveis, como numa xilogravura de Escher, por exemplo), e criando um objeto literário lúdico, um produto estético de singular beleza formal.
“Depois de marchar por sete dias através das matas, quem vai a Bauci não percebe que já chegou. As finas andas que se elevam do solo a grande distância uma da outra e que se perdem acima das nuvens sustentam a cidade. Sobe-se por escadas. Os habitantes raramente são vistos em terra: têm todo o necessário lá em cima e preferem não descer. Nenhuma parte da cidade toca o solo exceto as longas pernas de flamingo nas quais ela se apoia, e, nos dias luminosos, uma sombra diáfana e angulosa que se reflete na folhagem.
Há três hipóteses a respeito dos habitantes de Bauci: que odeiam a terra; que a respeitam a ponto de evitar qualquer contato; que a amam da forma que era antes de existirem e com binóculos e telescópios apontados para baixo não se cansam de examiná-la, folha por folha, pedra por pedra, formiga por formiga, contemplando fascinados a própria ausência.”
[As cidades e os olhos, 3 – As cidades invisíveis, Italo Calvino, 1972]
Um dado curioso, nesse romance, é que não há nele propriamente nenhum enredo ou trama ficcional, já que não ocorrem alguns elementos indispensáveis nesse gênero, como a jornada do herói, uma necessidade inescapável a ser suprida, um oponente ou antagonista a ser superado, nem sequer conflito ou desfecho dramático, enfim. Os relatos sobre as cidades simplesmente vão-se sucedendo sem pré-requisitos, apenas intercalados e emoldurados por diálogos entre os protagonistas, de modo que o livro pode ser aberto e lido a partir de qualquer ponto que se queira — um pouco à moda dos livros de poesia. Afinal, é também disso que se trata: As cidades invisíveis é pura prosa poética, quer dizer, a criação literária atuando e operando como meio de expressão da perspectiva artística do seu autor — e não da descrição objetiva e rigorosa de uma realidade perceptível por meio dos sentidos e do pensamento.
Ainda outras peculiaridades e idiossincrasias dessa obra têm inspirado e mobilizado os seus analistas e estudiosos, tais como a sua semelhança conceitual com As mil e uma noites; a singularidade de que todas as cidades respondem por nomes femininos, nomes de mulheres (Diomira, Isidora, Doroteia, Zaíra, Anastácia, Tamara, Zora...); ou a presença de objetos do século XX em algumas das cidades apresentadas por Polo, que seriam impensáveis no século XIII (arranha-céus, radares, lojas, estações de ônibus), por exemplo. Sem me deter em nenhum desses aspectos em específico, não posso deixar de observar, entretanto, como convergem todos na direção de atestar a opulência artística dessa obra, que se desdobra em sucessivas camadas de significação e de subleituras e interpretações possíveis, apresentando todas as vezes descobertas inusitadas, instigantes, fascinantes, aos olhos do leitor.
“…O Grande Khan tentava concentrar-se no jogo: mas agora era o porquê do jogo que lhe escapava. O objetivo de cada partida é um ganho ou uma perda: mas do quê? Qual era a verdadeira aposta? No xeque-mate, sob os pés do rei derrubado pelas mãos do vencedor, resta o nada: um quadrado preto ou branco. À força de desincorporar suas conquistas para reduzi-las à essência, Kublai atingira o extremo da operação: a conquista definitiva, da qual os multiformes tesouros do império não passavam de invólucros ilusórios, reduzia-se a uma tessela de madeira polida.
Então Marco Polo disse:
— O seu tabuleiro, senhor, é uma marchetaria de duas madeiras: ébano e bordo. A casa sobre a qual se fixou o seu olhar iluminado foi extraída de uma camada do tronco que cresceu num ano de estiagem. Observe como são dispostas as fibras. Aqui se percebe um nó apenas esboçado: um broto tentou despontar num dia de primavera precoce, mas a geada noturna obrigou-o a desistir. — Até então o Grande Khan não se dera conta de que o estrangeiro sabia se exprimir fluentemente em sua língua, mas não foi isso que o surpreendeu. — Eis um poro mais largo: talvez tenha sido o ninho de uma larva; não de um caruncho, pois este, logo depois de nascer, teria continuado a escavar, mas de uma lagarta, que roeu as folhas e foi a causa pela qual a árvore foi escolhida para ser abatida… Esta margem foi entalhada com a goiva pelo ebanista a fim de aderi-la ao quadrado vizinho, mais saliente…
A quantidade de coisas que se podia tirar de um pedacinho de madeira lisa e vazia abismava Kublai; Polo já começava a falar de bosques de ébano, de balsas de troncos que desciam os rios, dos desembarcadouros, das mulheres nas janelas…”
[As cidades invisíveis, Italo Calvino, 1972].
Enfim, aqui, com o livro fechado entre as minhas mãos, os ombros relaxados, olhando para a sua contracapa, já saudoso do texto ainda latente na memória, me apanho a ponderar: que experiência maravilhosa é essa — trazida pela literatura feita por Italo Calvino! Diante de tamanha sensibilidade, habilidade e destreza no manejo das palavras (e seus silêncios) combinadas, em equivalente medida, com uma compreensão incomum da dimensão humana, como somente os grandes mestres alcançam – aqueles que realmente chegaram lá —, só me ocorre um sentimento de profunda gratidão.
DIGRESSÕES:
Série Marco Polo
Entre as consequências práticas no meu cotidiano, durante essa nova leitura de As cidades invisíveis e as pesquisas sobre o livro, acabei tendo que maratonar as duas temporadas da série Marco Polo (Netflix, 2014-16). Algo que me divertiu, entreteve e me informou bastante, pois, ainda que não seja adaptada ou inspirada na obra de Calvino — portanto, sem a narrativa sobre as cidades —, a série se ampara em referências históricas e literárias, propondo-se a ficcionalizar os primeiros anos do convívio entre Marco Polo e Kublai Khan, compondo uma narrativa densa, bem desenvolvida e produzida com grande cuidado e competência.
Animação As cidades e o desejo Nº 5
As cidades e o desejo – nº 5 (de 2012), com direção, roteiro e direção de arte de Gabriel Bitar, é um belo filme de animação (5’25”), adaptado — este sim — de um excerto de As cidades invisíveis.
Documentário Italo Calvino: um uomo invisibile
O documentário Italo Calvino: um uomo invisibile, de 1974, dirigido por Nereo Rapetti, acompanha o cotidiano — e as reflexões — de Italo Calvino, quando este vivia em Paris.
Galeria Pinterest
No Pinterest, pra quem tiver tempo de olhar, entre tanta coisa bonita e interessante a respeito do livro e de Calvino, tem uma belíssima Galeria de ilustrações das “Cidades Invisíveis”, mantida por um website dedicado à Arquitetura (ArchDaily), com um rico acervo de interpretações muito originais e imaginativas das cidades descritas por Marco Polo.
Mais uma vez, obrigado pela sua leitura, seu tempo e sua atenção!
Um abraço,
Cláudio Dutra
Floripa, 17/09/2023